quinta-feira, 7 de junho de 2012

I O JEJUM



Uma história de resistências


O jejum da Beata Alexandrina pode ser visto como um instante convite, um apelo para que as pessoas se aproximem do seu surpreendente mundo. Por isso decerto os seus inimigos de hoje, como os de ontem, teimam em pô-lo em causa. Realmente, se ele fosse falso, abalava irremediavelmente o edifício desse mundo. Mas é um facto e factos não se negam, explicam-se.
Ele é um desafio lançado à nossa mentalidade que valoriza o dado objectivo e inapelável. Por isso é particularmente interpelante: é extraordinário, mas verdadeiro.
Se cheira a milagre, é falso, pensa muita gente (1). Mas esta atitude é tão pouco científica como a aceitação ingénua do facto miraculoso. Científico é analisar, investigar os factos até ao limite e depois tirar as conclusões que eles imponham, sejam elas quais forem.
Felizmente, a história das resistências ao jejum da Alexandrina responde, cremos, a todas as objecções que sobre ele hoje se queiram levantar. Muitos se anteciparam: levantou-as o Arcebispo de Braga, levantaram-nas vários médicos, levantou-as a comissão teológica que a examinou em 1944, etc.
Esse jejum começou por ser uma certeza apenas para a roda dos amigos da Alexandrina, para aqueles que a conheciam de perto e que com ela sofriam e que sabiam que nela não havia mentira. Depois, a custo, a notícia divulgou-se e ganhou adeptos.
Como veremos à frente, essa abstenção total de alimentos ou inédia não é um facto novo na história da Igreja.
Vamos abordar o tema em dois momentos: no primeiro tentaremos estabecer com a máxima segurança a realidade do jejum, no segundo, procuraremos penetrar já no mundo da Beata, mas a partir do mesmo jejum.

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Contratempo
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Quando estávamos a guardar a nossa resposta ao último comentário que se encontrava na segunda mensagem deste blogue, a primeira mensagem, ignoramos por que artes, passou para terceira. No processo de a repor no devido lugar, desapareceram todos os comentários, o que lamentamos. Em relação ao último deles, o do Fernando, leia-se esta transcrição do Boletim de Graças n.º 74, ano VII, de 1963. O Dr. M. Augusto de Azevedo fala do recente falecimento do Arcebispo D. António Bento Martins Júnior e das conversas que com ele tivera sobre a Alexandrina:
Bons tempos esses, em que, por vezes, Sua Excelência Reverendíssima nos interrogava demoradamente sobre a saudosa Alexandrina. Um dia, falando do jejum absoluto dela, dizia-me o Sr. Arcebispo Primaz, com o seu sorriso bondoso, inteligente e perscrutador:- Dum dia para o outro explica-se tanta coisa! Quem sabe se virá tempo em que, por esta ou por aquela doença, de possa viver com pouco ou nenhum alimento?!E eu respondi logo a Sua Excelência reverendíssima:Não precisamos de esperar por “esse tempo” para ouvir ou ler essas tais engraçadas explicações. Renan já tentou explicar naturalmente a saciedade de milhares de pessoas com poucos pães e menos peixes, não falando das sobras. Ora, enquanto natureza humana for o que é hoje e foi sempre e consequentemente enquanto as leis da Química-Filosófica não forem modificadas, não pode ser explicados naturalmente tais casos.
Dr. Azevedo era primus inter primos, como diziam dele médicos que sabiam latim. Primeiro entre os primeiros.
Sem uma causa sobrenatural, não se vê que possa vir algum dia a ser explicado o jejum absoluto da Alexandrina nem muito menos possa ser explicado como ela, sem comer anos a fio, podia ter os seus fluxos menstruais normais ou falar horas e horas seguidas para as visitas que recebia.

***
[1] Atitude já apontada por Jean Guitton; é um preconceito positivista afirmar (sem prova científica, logo dogmática) que não pode haver milagres porque contrariam as leis da natureza e só podem ser aceites as afirmações científicas. Só que esta afirmação não é científica, logo contradiz-se a si própria. Z.C.

1 – “Uma mulher que não come nem bebe há 6 anos e vive perfeitamente!...”


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Um dos primeiros testemunhos públicos, inequívoco e insuspeito, sobre o jejum da Alexandrina foi publicado em 4 de Novembro de 1947 no Jornal de Notícias. Terá sido escrito pelo próprio director desse diário portuense.
Sob o título de “Uma mulher que não come nem bebe há 6 anos e vive perfeitamente!...”, o artigo, desenvolve-se em duas partes. Começa com uma breve introdução, a que se segue uma entrevista à doente, e depois completa-se com a segunda parte, intitulada “A história da enfermidade e as conclusões clínicas que ela provocou”.

O jornalista tinha tomado conhecimento do facto invulgar e quis indagar da sua veracidade. O seu trabalho dá apenas conta do que pôde apurar, sem alguma vez se pretender substituir aos médicos judiciosos que o tinham estudado. Não acrescenta nem diminui a informação a que teve acesso. Coisa mais serena e objectiva não é legitimo pretender. Veja-se então a primeira parte, a entrevista:
Haviam-nos falado da existência, em Balasar, no concelho da Póvoa de Varzim, de uma paralítica que viveria em regime de jejum integral. Conhecemos, da tradição, os grandes jejuadores a Índia, que conseguem passar largos períodos, 40 a 50 dias, sem ingerir alimentos, mas sabemos que se esses indivíduos não comem sólidos, não deixam porém de ingerir líquidos. Pelo que nos informavam, a doente de Balasar não comia nem bebia. Seria possível? Mas então como se explica a sua existência – a sua sobrevivência?
O assunto espevitou a nossa curiosidade jornalística – e decidimos tirá-lo a limpo tanto quanto os nossos meios permitissem.
Claro que a primeira ideia que nos acudiu foi ir à Póvoa.
Não se trata, aqui, como se entende, de pôr em prática a conhecida divisa de S. Tomé – «ver para crer». O facto de vermos a doente, e foi isso que tratámos de fazer, não quer dizer que nos desse a certeza de que ela se encontra em abstinência completa. Para tal seria preciso usar outros meios, que já não são da nossa competência.
Indicava-se uma observação demorada, uma vigilância permanente, durante muitos dias. Mas também esse pormenor não o descuramos, como o leitor verificará na altura própria. Por nossa parte, o que pretendíamos e o que conseguimos foi falar à paralítica, ouvir-lhe algumas palavras, colher uma impressão pessoal acerca da sua enfermidade e da sua psicologia.
A doente chama-se Alexandrina e tem presentemente 43 anos. Reside com sua mãe e sua irmã, na freguesia de Balasar, a 10 quilómetros da sede do concelho, numa pequena casa do lugar do Calvário, em cuja parede exterior se vê um azulejo com a imagem da Virgem.
À porta, quando chegámos, estacionava um automóvel. Um dos moradores do local, que nos havia indicado o caminho, elucidou-nos:
- São visitas.
E acrescentou:
- É uma excelente mulher. O que mais impressiona é que, não comendo nem bebendo, a sua aparência é relativamente magnífica. Fala pouco, mas é para todos duma grande doçura. E olhe que pensa como se fosse uma pessoa de saber.
E rematando, admirativamente:
- O que se passa com ela é um mistério!
Nesse momento saem as pessoas por quem o automóvel esperava. Depois de partirem, a Sra. Maria do Vicente, mãe da Alexandrina, manda-nos entrar.
A doente está meia deitada na cama, a cabeça e as costas amparadas em almofadas. O quarto, simples, com a claridade luzente que lhe vem duma janela ampla, está ornamentado por um crucifixo e várias imagens. Ao fundo do leito, sobre um cobertor fino, repousa um bichano de raça.
A Alexandrina, de sorriso aberto, espera talvez que lhe dirijamos a palavra. O rosto é sobre o comprido, a boca rasgada, a pele branca, um tudo-nada rosada. Seus olhos são pretos, duma luz brilhante, e os cabelos também negros, emolduram-lhe a fisionomia numa expressão de simpatia desafectada mas, tem 43 anos, mas não figura mais que 35.
Entrámos em conversa:
- Disseram-nos que não se alimenta.
- É verdade. Deixei de comer e de beber há seis anos.
- Mas não tem apetite?
- Estou sempre enfartada.
- Repugnam-lhe os alimentos?
- Não. Por vezes sinto até saudades deles.
- Então porque não aproveita essas ocasiões para tentar uma alimentação ligeira?
- Não posso. Sinto-me bem.
- Mesmo bem?
- É como quem diz: Passo bem, passando mal.
- Há que tempo está doente?
- Trinta anos. Só há 13 é que tive a primeira grande crise. Dessa vez, torturada pelo vómito, sofri um jejum de 17 dias. Vieram depois outras crises, menos prolongadas. Quando elas passavam, voltava a comer. Por fim, quase só o comia fruta. Mas há seis anos veio a crise definitiva. Então deixei os alimentos por completo.
- O seu aspecto não deixa perceber isso.
- Cada um sabe de si. Compreendo que a minha doença tem despertado curiosidade e murmurações. Aflige-me que tal suceda: desejaria que não se preocupassem comigo. De mim já se tem falado demais. Se estivesse no meu poder, metia-me num buraco.
A Alexandrina fala porém sem aborrecimentos – fala naturalmente, dizendo o que sente. Essa simplicidade é transparente. Sofre, por certo, mas resiste com alegria, couraçada por uma decidida força espiritual, a sua fé.
Insistimos no interrogatório:
- E os médicos?
- Os médicos – não dizem nada. Todas as semanas vem aqui o Sr. Dr. Azevedo, mas não me receita remédios. Há cinco anos estive em observação numa casa de saúde do Porto. Foram 40 dias de vigilância apertada, rigorosa. Mas regressei – daí como havia entrado para lá.
Passava meia hora. A enferma estava visivelmente fatigada. Despedimo-nos, fazendo votos pelas suas melhoras. Sorrindo, ela agradeceu-nos.


Não há aqui uma histérica a falar talvez dos seus ataques demoníacos, de exorcismos, de rezas e coisas do género. Não, a Alexandrina é uma mulher serena, que pensa correctamente, que possui uma “expressão de simpatia desafectada”, que não dispensa uma graça quando vem a ocasião dela: “passo bem, passando mal” (passar mal neste caso é não comer).
O articulista avança depois para a segunda parte do seu escrito.

..
Se a Alexandrina estivera internada e vigiada, seria curioso saber quais as conclusões a que os médicos haviam chegado.
E foi precisamente esse facto que procurámos elucidar.
O internamento da doente verificou-se com efeito no Refúgio da Paralisia Infantil, de que é director o ilustre neurologista Dr. Gomes de Araújo. Das observações diversas e aturadas feitas durante o internamento, resultou um relatório, cuja leitura nos foi amavelmente facultada. Não seguimos os passos desse documento, em todos os seus pormenores, mas vamos aludir aos seus pontos essenciais, para uma melhor compreensão do estranho caso que nele se foca.
A Alexandrina foi vista em 1941, na clínica do Sr. Dr. Gomes de Araújo, onde compareceu com o seu médico assistente, Sr. Dr. Manuel Augusto Dias de Azevedo, de Ribeirão. O diagnóstico desse exame determinou uma paralisia ergástica por compressão.
Em Maio de 1943, o Dr. Gomes de Araújo, instado pelo Dr. Azevedo e outras pessoas, que lhe afirmaram que a doente deixara de se alimentar há 13 meses, visitou-a em Balasar, na companhia do Sr. Prof. Dr. Carlos Lima, e depois dum exame neurológico e psicológico, aconselhou o internamento, para observação e tentativas de terapêutica.
Em 29 de Julho desse mesmo ano, verificou-se a entrada da enferma no Refúgio, na Foz.
Sigamos agora passos mais curiosos da observação clínica, sob todos os aspectos.
Linha genealógica da enferma e outros antecedentes: não teve ascendentes alcoólicos nem loucos, mas há algures tuberculosos e cancerosos. Aos 11 anos teve uma doença grave que parece ter sido uma febre tifóide. Quando tinha 13 anos, deu uma queda da altura de 3 metros e meio, sentindo uma dor aguda na região lombar sacra. Como a queda foi determinada por uma emoção violenta de temor, ficaram-lhe dela penosas recordações, surgindo antes os primeiros distúrbios dispépticos, com depressão neuro-psíquica: dois fenómenos paralíticos de que se libertou mais tarde. Aos 20 anos foi para o leito, por motivo dos seus padecimentos se terem agravado.
As impressões clínicas da observação acentuam: Aspecto perfeito à primeira vista, normal intelectiva, afectiva e volitivamente, mas depressa se revela portadora de um equipamento de ideias fixas, estereotipadas e sistematizadas, vivendo e sentindo intensa e sinceramente, sem sombra de mistificação ou impostura, ideias que determinam a abstinência.
E quanto a sintomas fisionómicos e morais: expressão viva, perfeita, meiga, bondosa, acariciante; atitude sincera, despretensiosa, correntia. Nem exotismo nem melifluidades; nem timidez nem exaltamento de voz. Conversa natural, inteligente, subtil.
Na vigilância feita à doente participaram várias senhoras da mais absoluta seriedade. D. Maria Guichard, D. Amélia Romualdo Ribeiro, D. Irene e D. Júlia F. Madureira Guedes, D. Rosa e D. Helena Gomes de Araújo, D. Helena G. Araújo Silva, D. Maria de Sousa Pinto e D. Maia Alice Silva Rosas. Algumas destas senhoras foram convidas a verificar a doente por se mostrarem incrédulas quanto à abstinência. E essa vigilância durou 40 dias, sendo aplicados à doente panos frescos na fronte e um saco impermeável no epigastro, com soluções de sal amargo, aliás por ela ignorados.
O médico interrogou-a longamente, tentando convencê-la a alimentar-se. Que não: sofre por amor de Deus – redargue.
Morrerá se continuar a não comer. Por isso, faz-lhe saber que vai começar a tentar uma pequena alimentação. Ela insiste na recusa: «Deus não quer que eu coma».
- Mas repugnam-lhe os alimentos?
- Não. Até por vezes tenho saudades da comida.
Concretamente – a observação e a vigilância permitiram verificar estes factos excepcionais: a doente não comeu, não bebeu, não urinou, não defecou. Citando Charcot, anota-se que a falta de apetite (anorexia mental) é dos acidentes mais graves nos histéricos. Em parte é o caso da Alexandrina. Mas só em parte. É que nela a abstinência é total, acompanhada pela paralisação da função excretora dos rins; quer dizer, nenhumas micções, como também nenhumas defecções.
O documento é uma notável peça científica e conclui desta maneira, em que o autor empenha a sua probidade profissional e pessoal:
Trata-se duma neurópata. Verificou-se durante 40 dias completa abstinência de alimentos e bebidas, o que leva a crer que tal situação possa ter notável precedência. Durante esse período não defecou nem urinou, o que ultrapassa os casos de aneura (?) conhecidos.
A despeito da normal perda de peso, conserva uma frescura e resistência impressionantes. Finalmente, oferece o aspecto dum caso que a Medicina sabe em grande parte explicar, mas não deixa contudo de patentear alguns pormenores que, pela sua importância de ordem biológica, tais a duração da abstinência de líquidos e anúria, impõem uma suspensão, aguardando que uma explicação clara faça a necessária luz.
A ciência não é definitiva, como se vê. O que é incontroverso é o facto de a doente viver há anos – sem levar à boca nem alimentos nem bebidas.



Destacamos só estas afirmações:

E quanto a sintomas fisionómicos e morais: expressão viva, perfeita, meiga, bondosa, acariciante; atitude sincera, despretensiosa, correntia. Nem exotismo nem melifluidades; nem timidez nem exaltamento de voz. Conversa natural, inteligente, subtil.

Oito dias à frente, o Dr. Dias de Azevedo, em novo artigo saído no mesmo jornal, fez alguns acertos à informação publicada e forneceu mais alguns pormenores.