quinta-feira, 7 de junho de 2012

I O JEJUM



Uma história de resistências


O jejum da Beata Alexandrina pode ser visto como um instante convite, um apelo para que as pessoas se aproximem do seu surpreendente mundo. Por isso decerto os seus inimigos de hoje, como os de ontem, teimam em pô-lo em causa. Realmente, se ele fosse falso, abalava irremediavelmente o edifício desse mundo. Mas é um facto e factos não se negam, explicam-se.
Ele é um desafio lançado à nossa mentalidade que valoriza o dado objectivo e inapelável. Por isso é particularmente interpelante: é extraordinário, mas verdadeiro.
Se cheira a milagre, é falso, pensa muita gente (1). Mas esta atitude é tão pouco científica como a aceitação ingénua do facto miraculoso. Científico é analisar, investigar os factos até ao limite e depois tirar as conclusões que eles imponham, sejam elas quais forem.
Felizmente, a história das resistências ao jejum da Alexandrina responde, cremos, a todas as objecções que sobre ele hoje se queiram levantar. Muitos se anteciparam: levantou-as o Arcebispo de Braga, levantaram-nas vários médicos, levantou-as a comissão teológica que a examinou em 1944, etc.
Esse jejum começou por ser uma certeza apenas para a roda dos amigos da Alexandrina, para aqueles que a conheciam de perto e que com ela sofriam e que sabiam que nela não havia mentira. Depois, a custo, a notícia divulgou-se e ganhou adeptos.
Como veremos à frente, essa abstenção total de alimentos ou inédia não é um facto novo na história da Igreja.
Vamos abordar o tema em dois momentos: no primeiro tentaremos estabecer com a máxima segurança a realidade do jejum, no segundo, procuraremos penetrar já no mundo da Beata, mas a partir do mesmo jejum.

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Contratempo
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Quando estávamos a guardar a nossa resposta ao último comentário que se encontrava na segunda mensagem deste blogue, a primeira mensagem, ignoramos por que artes, passou para terceira. No processo de a repor no devido lugar, desapareceram todos os comentários, o que lamentamos. Em relação ao último deles, o do Fernando, leia-se esta transcrição do Boletim de Graças n.º 74, ano VII, de 1963. O Dr. M. Augusto de Azevedo fala do recente falecimento do Arcebispo D. António Bento Martins Júnior e das conversas que com ele tivera sobre a Alexandrina:
Bons tempos esses, em que, por vezes, Sua Excelência Reverendíssima nos interrogava demoradamente sobre a saudosa Alexandrina. Um dia, falando do jejum absoluto dela, dizia-me o Sr. Arcebispo Primaz, com o seu sorriso bondoso, inteligente e perscrutador:- Dum dia para o outro explica-se tanta coisa! Quem sabe se virá tempo em que, por esta ou por aquela doença, de possa viver com pouco ou nenhum alimento?!E eu respondi logo a Sua Excelência reverendíssima:Não precisamos de esperar por “esse tempo” para ouvir ou ler essas tais engraçadas explicações. Renan já tentou explicar naturalmente a saciedade de milhares de pessoas com poucos pães e menos peixes, não falando das sobras. Ora, enquanto natureza humana for o que é hoje e foi sempre e consequentemente enquanto as leis da Química-Filosófica não forem modificadas, não pode ser explicados naturalmente tais casos.
Dr. Azevedo era primus inter primos, como diziam dele médicos que sabiam latim. Primeiro entre os primeiros.
Sem uma causa sobrenatural, não se vê que possa vir algum dia a ser explicado o jejum absoluto da Alexandrina nem muito menos possa ser explicado como ela, sem comer anos a fio, podia ter os seus fluxos menstruais normais ou falar horas e horas seguidas para as visitas que recebia.

***
[1] Atitude já apontada por Jean Guitton; é um preconceito positivista afirmar (sem prova científica, logo dogmática) que não pode haver milagres porque contrariam as leis da natureza e só podem ser aceites as afirmações científicas. Só que esta afirmação não é científica, logo contradiz-se a si própria. Z.C.

1 – “Uma mulher que não come nem bebe há 6 anos e vive perfeitamente!...”


..
Um dos primeiros testemunhos públicos, inequívoco e insuspeito, sobre o jejum da Alexandrina foi publicado em 4 de Novembro de 1947 no Jornal de Notícias. Terá sido escrito pelo próprio director desse diário portuense.
Sob o título de “Uma mulher que não come nem bebe há 6 anos e vive perfeitamente!...”, o artigo, desenvolve-se em duas partes. Começa com uma breve introdução, a que se segue uma entrevista à doente, e depois completa-se com a segunda parte, intitulada “A história da enfermidade e as conclusões clínicas que ela provocou”.

O jornalista tinha tomado conhecimento do facto invulgar e quis indagar da sua veracidade. O seu trabalho dá apenas conta do que pôde apurar, sem alguma vez se pretender substituir aos médicos judiciosos que o tinham estudado. Não acrescenta nem diminui a informação a que teve acesso. Coisa mais serena e objectiva não é legitimo pretender. Veja-se então a primeira parte, a entrevista:
Haviam-nos falado da existência, em Balasar, no concelho da Póvoa de Varzim, de uma paralítica que viveria em regime de jejum integral. Conhecemos, da tradição, os grandes jejuadores a Índia, que conseguem passar largos períodos, 40 a 50 dias, sem ingerir alimentos, mas sabemos que se esses indivíduos não comem sólidos, não deixam porém de ingerir líquidos. Pelo que nos informavam, a doente de Balasar não comia nem bebia. Seria possível? Mas então como se explica a sua existência – a sua sobrevivência?
O assunto espevitou a nossa curiosidade jornalística – e decidimos tirá-lo a limpo tanto quanto os nossos meios permitissem.
Claro que a primeira ideia que nos acudiu foi ir à Póvoa.
Não se trata, aqui, como se entende, de pôr em prática a conhecida divisa de S. Tomé – «ver para crer». O facto de vermos a doente, e foi isso que tratámos de fazer, não quer dizer que nos desse a certeza de que ela se encontra em abstinência completa. Para tal seria preciso usar outros meios, que já não são da nossa competência.
Indicava-se uma observação demorada, uma vigilância permanente, durante muitos dias. Mas também esse pormenor não o descuramos, como o leitor verificará na altura própria. Por nossa parte, o que pretendíamos e o que conseguimos foi falar à paralítica, ouvir-lhe algumas palavras, colher uma impressão pessoal acerca da sua enfermidade e da sua psicologia.
A doente chama-se Alexandrina e tem presentemente 43 anos. Reside com sua mãe e sua irmã, na freguesia de Balasar, a 10 quilómetros da sede do concelho, numa pequena casa do lugar do Calvário, em cuja parede exterior se vê um azulejo com a imagem da Virgem.
À porta, quando chegámos, estacionava um automóvel. Um dos moradores do local, que nos havia indicado o caminho, elucidou-nos:
- São visitas.
E acrescentou:
- É uma excelente mulher. O que mais impressiona é que, não comendo nem bebendo, a sua aparência é relativamente magnífica. Fala pouco, mas é para todos duma grande doçura. E olhe que pensa como se fosse uma pessoa de saber.
E rematando, admirativamente:
- O que se passa com ela é um mistério!
Nesse momento saem as pessoas por quem o automóvel esperava. Depois de partirem, a Sra. Maria do Vicente, mãe da Alexandrina, manda-nos entrar.
A doente está meia deitada na cama, a cabeça e as costas amparadas em almofadas. O quarto, simples, com a claridade luzente que lhe vem duma janela ampla, está ornamentado por um crucifixo e várias imagens. Ao fundo do leito, sobre um cobertor fino, repousa um bichano de raça.
A Alexandrina, de sorriso aberto, espera talvez que lhe dirijamos a palavra. O rosto é sobre o comprido, a boca rasgada, a pele branca, um tudo-nada rosada. Seus olhos são pretos, duma luz brilhante, e os cabelos também negros, emolduram-lhe a fisionomia numa expressão de simpatia desafectada mas, tem 43 anos, mas não figura mais que 35.
Entrámos em conversa:
- Disseram-nos que não se alimenta.
- É verdade. Deixei de comer e de beber há seis anos.
- Mas não tem apetite?
- Estou sempre enfartada.
- Repugnam-lhe os alimentos?
- Não. Por vezes sinto até saudades deles.
- Então porque não aproveita essas ocasiões para tentar uma alimentação ligeira?
- Não posso. Sinto-me bem.
- Mesmo bem?
- É como quem diz: Passo bem, passando mal.
- Há que tempo está doente?
- Trinta anos. Só há 13 é que tive a primeira grande crise. Dessa vez, torturada pelo vómito, sofri um jejum de 17 dias. Vieram depois outras crises, menos prolongadas. Quando elas passavam, voltava a comer. Por fim, quase só o comia fruta. Mas há seis anos veio a crise definitiva. Então deixei os alimentos por completo.
- O seu aspecto não deixa perceber isso.
- Cada um sabe de si. Compreendo que a minha doença tem despertado curiosidade e murmurações. Aflige-me que tal suceda: desejaria que não se preocupassem comigo. De mim já se tem falado demais. Se estivesse no meu poder, metia-me num buraco.
A Alexandrina fala porém sem aborrecimentos – fala naturalmente, dizendo o que sente. Essa simplicidade é transparente. Sofre, por certo, mas resiste com alegria, couraçada por uma decidida força espiritual, a sua fé.
Insistimos no interrogatório:
- E os médicos?
- Os médicos – não dizem nada. Todas as semanas vem aqui o Sr. Dr. Azevedo, mas não me receita remédios. Há cinco anos estive em observação numa casa de saúde do Porto. Foram 40 dias de vigilância apertada, rigorosa. Mas regressei – daí como havia entrado para lá.
Passava meia hora. A enferma estava visivelmente fatigada. Despedimo-nos, fazendo votos pelas suas melhoras. Sorrindo, ela agradeceu-nos.


Não há aqui uma histérica a falar talvez dos seus ataques demoníacos, de exorcismos, de rezas e coisas do género. Não, a Alexandrina é uma mulher serena, que pensa correctamente, que possui uma “expressão de simpatia desafectada”, que não dispensa uma graça quando vem a ocasião dela: “passo bem, passando mal” (passar mal neste caso é não comer).
O articulista avança depois para a segunda parte do seu escrito.

..
Se a Alexandrina estivera internada e vigiada, seria curioso saber quais as conclusões a que os médicos haviam chegado.
E foi precisamente esse facto que procurámos elucidar.
O internamento da doente verificou-se com efeito no Refúgio da Paralisia Infantil, de que é director o ilustre neurologista Dr. Gomes de Araújo. Das observações diversas e aturadas feitas durante o internamento, resultou um relatório, cuja leitura nos foi amavelmente facultada. Não seguimos os passos desse documento, em todos os seus pormenores, mas vamos aludir aos seus pontos essenciais, para uma melhor compreensão do estranho caso que nele se foca.
A Alexandrina foi vista em 1941, na clínica do Sr. Dr. Gomes de Araújo, onde compareceu com o seu médico assistente, Sr. Dr. Manuel Augusto Dias de Azevedo, de Ribeirão. O diagnóstico desse exame determinou uma paralisia ergástica por compressão.
Em Maio de 1943, o Dr. Gomes de Araújo, instado pelo Dr. Azevedo e outras pessoas, que lhe afirmaram que a doente deixara de se alimentar há 13 meses, visitou-a em Balasar, na companhia do Sr. Prof. Dr. Carlos Lima, e depois dum exame neurológico e psicológico, aconselhou o internamento, para observação e tentativas de terapêutica.
Em 29 de Julho desse mesmo ano, verificou-se a entrada da enferma no Refúgio, na Foz.
Sigamos agora passos mais curiosos da observação clínica, sob todos os aspectos.
Linha genealógica da enferma e outros antecedentes: não teve ascendentes alcoólicos nem loucos, mas há algures tuberculosos e cancerosos. Aos 11 anos teve uma doença grave que parece ter sido uma febre tifóide. Quando tinha 13 anos, deu uma queda da altura de 3 metros e meio, sentindo uma dor aguda na região lombar sacra. Como a queda foi determinada por uma emoção violenta de temor, ficaram-lhe dela penosas recordações, surgindo antes os primeiros distúrbios dispépticos, com depressão neuro-psíquica: dois fenómenos paralíticos de que se libertou mais tarde. Aos 20 anos foi para o leito, por motivo dos seus padecimentos se terem agravado.
As impressões clínicas da observação acentuam: Aspecto perfeito à primeira vista, normal intelectiva, afectiva e volitivamente, mas depressa se revela portadora de um equipamento de ideias fixas, estereotipadas e sistematizadas, vivendo e sentindo intensa e sinceramente, sem sombra de mistificação ou impostura, ideias que determinam a abstinência.
E quanto a sintomas fisionómicos e morais: expressão viva, perfeita, meiga, bondosa, acariciante; atitude sincera, despretensiosa, correntia. Nem exotismo nem melifluidades; nem timidez nem exaltamento de voz. Conversa natural, inteligente, subtil.
Na vigilância feita à doente participaram várias senhoras da mais absoluta seriedade. D. Maria Guichard, D. Amélia Romualdo Ribeiro, D. Irene e D. Júlia F. Madureira Guedes, D. Rosa e D. Helena Gomes de Araújo, D. Helena G. Araújo Silva, D. Maria de Sousa Pinto e D. Maia Alice Silva Rosas. Algumas destas senhoras foram convidas a verificar a doente por se mostrarem incrédulas quanto à abstinência. E essa vigilância durou 40 dias, sendo aplicados à doente panos frescos na fronte e um saco impermeável no epigastro, com soluções de sal amargo, aliás por ela ignorados.
O médico interrogou-a longamente, tentando convencê-la a alimentar-se. Que não: sofre por amor de Deus – redargue.
Morrerá se continuar a não comer. Por isso, faz-lhe saber que vai começar a tentar uma pequena alimentação. Ela insiste na recusa: «Deus não quer que eu coma».
- Mas repugnam-lhe os alimentos?
- Não. Até por vezes tenho saudades da comida.
Concretamente – a observação e a vigilância permitiram verificar estes factos excepcionais: a doente não comeu, não bebeu, não urinou, não defecou. Citando Charcot, anota-se que a falta de apetite (anorexia mental) é dos acidentes mais graves nos histéricos. Em parte é o caso da Alexandrina. Mas só em parte. É que nela a abstinência é total, acompanhada pela paralisação da função excretora dos rins; quer dizer, nenhumas micções, como também nenhumas defecções.
O documento é uma notável peça científica e conclui desta maneira, em que o autor empenha a sua probidade profissional e pessoal:
Trata-se duma neurópata. Verificou-se durante 40 dias completa abstinência de alimentos e bebidas, o que leva a crer que tal situação possa ter notável precedência. Durante esse período não defecou nem urinou, o que ultrapassa os casos de aneura (?) conhecidos.
A despeito da normal perda de peso, conserva uma frescura e resistência impressionantes. Finalmente, oferece o aspecto dum caso que a Medicina sabe em grande parte explicar, mas não deixa contudo de patentear alguns pormenores que, pela sua importância de ordem biológica, tais a duração da abstinência de líquidos e anúria, impõem uma suspensão, aguardando que uma explicação clara faça a necessária luz.
A ciência não é definitiva, como se vê. O que é incontroverso é o facto de a doente viver há anos – sem levar à boca nem alimentos nem bebidas.



Destacamos só estas afirmações:

E quanto a sintomas fisionómicos e morais: expressão viva, perfeita, meiga, bondosa, acariciante; atitude sincera, despretensiosa, correntia. Nem exotismo nem melifluidades; nem timidez nem exaltamento de voz. Conversa natural, inteligente, subtil.

Oito dias à frente, o Dr. Dias de Azevedo, em novo artigo saído no mesmo jornal, fez alguns acertos à informação publicada e forneceu mais alguns pormenores.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

2 – O veredicto da comissão examinadora

...
O esforço do Dr. Azevedo para conseguir o reconhecimento público da veracidade do jejum da Alexandrina sofreu um doloroso revés quando, em Junho de 1944, foi publicado o veredicto da Comissão Examinadora que o Arcebispo de Braga D. Bento Martins Júnior incumbira de estudar a Doente de Balasar para que a diocese pudesse emitir sobre o caso um parecer fundamentado.
Foi esta a conclusão a que chegou a comissão:

Perante o longo relatório feito, esta Comissão sente a necessidade de dizer nada ter encontrado que ateste (no caso da Alexandrina) algo de sobrenatural, extraordinário ou miraculoso. Ousa mesmo acrescentar que há indícios seguros para se afirmar o contrário. Por conseguinte, esta Comissão faz votos para que o Ex.mo Prelado adopte todas aquelas medidas necessárias para a glória de Deus e a tranquilidade de tantas almas.

Por isso propôs o Arcebispo:

Tendo em vista este esclarecido parecer e voto, determinamos o seguinte:
a) que se faça silêncio sobre os pretensos factos extraordinários atribuídos à referida doente ou de que ela afirma ser protagonista, os quais não devem ser expostos nem apreciados em público, mas confinar-se quando muito ao âmbito estritamente privado;
b) que seja feita recomendação aos sacerdotes que não alimentem mas antes caridosamente contrariem a curiosidade que em volta da doente e por considerações de ordem religiosa se possa vir a manifestar ainda, visto que essa curiosidade não pode ser sã e bem fundada, nem é louvável;
c) que a mesma recomendação se faça a todos os nossos diocesanos, sempre que houver necessidade e se puder fazer discretamente;
d) que ao Rev.do Pároco de Balasar se comunique que o incumbimos, além disso, de velar para que a doente e a sua habitação não sejam molestadas com visitas importunas, feitas a título de observação dos pretensos fenómenos extraordinários a que se atribua carácter religioso ou intenção religiosa.


Estas determinações foram lidas e comentadas em quase todos os púlpitos da Arquidiocese de Braga e deixaram o Dr. Azevedo sem aliados, isolado, ao menos parcialmente desacreditado face a adversários de peso.
Para se medir, porém, a gritante irresponsabilidade da comissão, leia-se a contundente crítica que ela mereceu aquando do Processo Diocesano:

O “Parecer” expresso pela Comissão não pode ser considerado válido por vários motivos:
1 – Os teólogos não visitaram a Alexandrina (houve apenas uma visita ocasional dum dos membros);
2 – Os teólogos examinaram apenas pouquíssimos escritos da Serva de Deus;
3 – Não foram interrogados o director espiritual, os familiares, o médico assistente, etc.
4 – Contra o parecer dos peritos-médicos sustentam a opinião de que se trata dum caso de histerismo;
5 – Exprimem um juízo sobre o conteúdo dos Escritos que não concorda com o juízo dos Censores.
6 – O “Parecer” é desmentido no Processo de Braga, foi abandonado pelo Arcebispo de Braga e pelos próprios teólogos redactores, que depuseram depois a favor da Alexandrina. Foi um caso de incompetência e presunção.

3 – Carta do Dr. Dias de Azevedo ao Arcebispo Braga

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Mas a crítica do Processo Diocesano foi feita muito depois, quando a comissão já havida caído em descrédito. Ora se a luta foi difícil foi naquele Verão de 1944!
O Dr. Azevedo sentiu a necessidade de reagir face a esta resistência vinda já não do campo médico, mas do da filosofia e teologia; e fê-lo numa carta enviada ao Arcebispo bracarense em 2 de Agosto.
Trata-se dum importante documento pela clareza da argumentação, orientada em grande parte para a defesa do carácter extraordinário do jejum. É um documento dum católico esclarecido que se bate pela verdade, mesmo indo contra o parecer do seu arcebispo.

Exmo. e Revmo. Senhor Arcebispo Primaz,
Recebi o amável cartão de V. Exa. Revma., acompanhado do parecer duma comissão e dumas determinações, relativas ao caso, há muito falado, de Balasar. No fim de ler tudo o que me era dito, senti o dever de dizer a V. Exa. Revma., com o maior respeito e com a maior franqueza, umas cinco palavras:

1.ª Palavra: guardarei sempre em meu coração as palavras amáveis do cartão do Senhor Arcebispo Primaz, agradecendo-lhas, muito penhorado;
2.ª Palavra: procurarei ter a maior prudência, ao ser provocado a falar ou escrever da Alexandrina e sempre recordarei as determinações de V. Ex.cia Revma., para lhes ser obediente, na medida do possível, salva a liberdade para responder a qualquer crítica referente ao caso, saída em qualquer jornal ou revista de responsabilidade, pois não posso nem quero menosprezar o meu brio profissional;
Ilustração 1 Página da carta do Dr. Dias de Azevedo ao Arcebispo
3.ª Palavra: continuarei inabalável, até que a razão ou o bom senso me aconselhem atitude diferente, no mesmo posto de observação, prudência, investigação clínica e admiração pela Alexandrina, verdadeira mártir, que o tempo e Deus plena e brilhantemente justificarão;
4.ª Palavra: servindo-me da ideia do Prof. da Faculdade de Medicina do Porto, Senhor Dr. Mazano, que, falando sobre este caso, e mostrando-se muito interessado por ele, disse «não há explicação possível para já não comer há dois anos», eu continuo, como médico, sem receio de ser confundido, a afirmar que este caso é extraordinário, porque a Ciência diz que uma mulher de 39 anos, de vida intelectual e afectiva intensas, de faculdades e sentidos normais, passando alguns dias e noites sem dormir, e dormindo pouco durante o outro tempo, conservando invariavelmente ou com pequena variação o mesmo peso, conservando ainda o sangue normal nos seus elementos constitutivos ou de desassimilação, vivendo não somente quarenta dias completos e consecutivos (sob vigilância, de dia e de noite, feita por algumas pessoas descrentes), mas dois anos e três meses, aquele primeiro período em abstinência absoluta de alimentos sólidos e líquidos, incluindo a simples água, e o outro período em abstinência absoluta de substâncias alimentares, simplesmente bebendo, um ou outro dia, por imposição médica, uma ou outra colherinha de água simples, com o fim de diminuir a secura que em sua boca por vezes sente, constitui um facto verdadeiramente extraordinário, não sendo preciso, para esta classificação, que os médicos tenham de pedir licença aos filósofos ou teólogos para digna e justamente a fazerem. A quem me disser que há um parecer de filósofos e teólogos que, invadindo campo defeso, significa não ser extraordinário este facto (que maravilhou um especialista de Neurologia não crente em vários dogmas católicos, a ponto de anunciar que devemos ficar «suspensos, aguardando que uma explicação clara faça a necessária luz», pois a observação da Alexandrina tinha podido «ser segura, firme, incontestável, só deixando dúvidas aos que têm o hábito de duvidar … de si próprios»), eu responderei que quem tiver lido a História e a biografia de algumas criaturas extraordinárias sabe bem o valor dos pareceres de uma ou outra comissão. A Igreja só quer a verdade e eu amo uma e outra.
5.ª Palavra: a Comissão, lendo isto, há-de julgar que esta prosa é um pouco enfadonha e estranha a amantes da filosofia e teologia, e eu, para a suavizar, peço licença para citar as palavras do P.e Louis Capalle, S.J., em «Les âmes généreuses», pág. 165 e seg.:

La vérité théologique et expérimentale est que Dieu n’a pas donné aux âmes une résistance illimitée, et qu’Il a laissé aux directeurs ou supérieurs imprudents la puissance redoutable d’entraver ou même de ruiner l’œuvre magnifique qu’Il se proposait d’accomplir. Nier cette vérité ou même chercher à l’atténuer par sophismes spécieux, serait atteindre par le fait même la notion de responsabilité, fondement essentiel de toute morale.

E, depois de mais frases muito interessantes, diz ainda:

Malheureusement, après une réponse évidente, on en veut souvent une plus évidente encore; et ainsi on oublie que Dieu, souverainement indépendant, ne se plie pas toujours aux exigences de ses créatures. Il donne assez de lumières pour que l’on puisse raisonnablement conclure à son intervention, et Il laisse assez de ténèbres pour que l’on ait le mérite d’une humble soumission.

Todas estas frases podem resumir-se em poucas: as determinações de V. Ex.cia, no geral, são justas, embora o tempo não venha a justificar algumas palavras como «pretensos», e o parecer da Comissão, enquanto ao facto, é exorbitante, negando-lhe a qualidade de extraordinário e dando lugar até a juízos temerários, o que não fica bem a filósofos e muito menos a teólogos.
Termino esta, fazendo votos pela preciosa vida de V. Excia. Revma. e pedindo que esta carta seja anexa ao supra mencionado parecer da referida Comissão (ou ao relatório dos médicos) que se pronunciou sobre a grande mártir que é a Alexandrina de Balasar, a quem o Mons. Vilar chamava sua “protectora”, a sua “colaboradora providencial”, a sua “cooperadora mais fiel que Jesus lhe deu”. E esse valia uma Comissão.
Beijo as mãos sagradas de V. Excia. Revma.
Manuel Augusto Dias de Azevedo
Ribeirão, 2 de Agosto de 1944.


Firmeza e clareza notáveis, obediência inteligente, não cega, é o que encontramos nestas “palavras” do Dr. Azevedo.

4 – Quem era o Dr. Gomes de Araújo?

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As polémicas em redor do jejum da Alexandrina envolveram muita gente. Embora arredado e silenciado em Vale de Cambra, todos sabiam que era o trabalho de nove anos do P.e Mariano Pinho que em primeiro lugar era posto em causa; o P.e Agostinho Veloso, esse estava de mãos livres e por isso activo; os médicos, como o Dr. Gomes de Araújo ou o Dr. Carlos Lima, não se envolveram em debates que tinham contornos que ultrapassavam a medicina, mas saberiam bem que se jogava ali o crédito dos seus nomes; os membros da comissão, esses sentir-se-iam seguros pelo aval do Arcebispo.
Tentemos fazer ao menos uma sumária (e incompleta) avaliação de dois protagonistas desta borrasca, os Drs. Gomes de Araújo e Dr. Azevedo.
É pouco o que conhecemos sobre o Dr. Gomes de Araújo para além do que a seu respeito escreve a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Nascido em Baião em 1881, «formou-se na antiga Escola Médico-Cirúrgica do Porto, onde fez um curso distinto. Defendeu tese em 1908, sobre Ionoterápia Eléctrica, trabalho que foi premiado, dedicando-se desde logo à especialidade das doenças nervosas e artríticas.
Em 1926 fundou, na Foz-do-Douro, o “Refúgio da Paralisia Infantil”, que sempre tem dirigido e desenvol­vido com dedicação inexcedível. Esta obra de assistên­cia representa um grande esforço, pois contam-se já por milhares as crianças beneficiadas, e constitui um exemplo que foi seguido na capital, onde passou a organizar-se o «Centro contra a Paralisia Infantil».
O notável médico de­dicou-se à obtenção do soro antipoliomielítico, único que, a partir de 1940, passou a ser aplicado em Portugal.
De entre o grande número de trabalhos publicados, citaremos:
A doença de Hein-Medin — Seus aspectos clí­nico e social; A propósito da Seroterápia da Poliomielite; A primeira epidemia de Poliomielite em Portugal; O pro­blema social do Reumatismo; Histeria — Pithiatismo; Mielastenia Amiotrófica; Os Reumatismos nos seus as­pectos clínico, social e médico-legal, etc.
Tem colaborado assiduamente na Medicina Moderna, no Portugal Médico e noutras revistas científicas nacionais e estrangeiras.
É membro da Sociedade Portuguesa de Química e da Real Academia de Medicina de Madrid» (Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira).
O Dr. Gomes de Araújo faleceu a 18 de Março de 1964. Nessa altura, o Dr. Dias de Azevedo referiu-se-lhe longamente, mas quase sempre no sentido de esclarecer os leitores sobre o jejum da Alexandrina. Essa informação vê-la-emos mais adiante. É de interesse saber que o Dr. Gomes de Araújo possuiu uma casa na Trofa, que o punha na vizinhança do Dr. Dias de Azevedo.
...
Imagens: Dr. Gomes de Araújo, capa de um seu livro e edifício do Refúgio da Paralisia Infantil na Foz do Douro.

5 – Quem era o Dr. Manuel Dias de Azevedo?

...
O Dr. Manuel Augusto Dias de Azevedo nasceu na vila de Ribeirão, Vila Nova de Famalicão, em 21/09/1874, e aí faleceu, a 20/12/1971. No número de Janeiro de 1960 do Boletim Mensal da Alexandrina, que fundou e que redigiu sozinho desde Julho de 1957 a Agosto de 1970, evocava ele assim a sua adolescência e juventude:

Fui estudar, tendo onze anos de idade, para os Seminários de Braga e, depois de feito aí o Curso Teológico, fui convidado por quem de direito a ir formar-me na Universidade Gregoriana, agradecendo, mas declinando o convite.

Ensinou depois no Colégio de Ermesinde, dedicando-se simultaneamente a actividades de animação religiosa. É então que se matricula na Faculdade de Medicina do Porto, iniciando a actividade médica nos anos 30. Mas voltemos ao seu relato autobiográfico:

Em seguida fui leccionar e resolvi simultaneamente repetir nos Liceus os exames do curso secundário. Após esses exames, matriculei-me na Faculdade de Medicina, fazendo esse curso no tempo normal de seis anos e leccionando sempre. Defendida depois a tese de doutoramento, que nesse tempo era facultativa, embora convidado por pessoas ilustres a ficar a trabalhar no Porto, vim para Ribeirão, minha terra natal, onde há vinte e cinco anos venho exercendo clínica.

Um catedrático veio a chamar ao Dr. Dias de Azevedo «Augusto na medicina»; o Pe. Humberto declara-o «primus inter primos».
Apesar de ser pai de 14 filhos, dadas as dificuldades económicas da população, dedicava dois dias semanais a consultas gratuitas para os mais indigentes.
Homem de acção, foi fundador ou animador de várias instituições de prevenção social, pugnando por elas quer na sua terra natal, quer em vilas e cidades. «Foi chamado a usar da palavra em congressos religiosos de carácter nacional, assembleias paroquiais, permanecendo os seus discursos quer nas respectivas actas, quer em separatas»[1].
Sobre a sua acção junto da Alexandrina, a quem tomou como madrinha, não nos vamos alongar. Interveio em vários jornais e manteve mesmo polémicas com vista a defender o bom nome da sua doente.
...
[1] Citado de Jorge M. M. B. da Silva, Vida e obra do Dr. Manuel Augusto Dias de Azevedo, trabalho policopiado apresentado como monografia da cadeira de História da Medicina no Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar.
...
Imgens: Dr. Dias de Azevedo e fragmento duma página de jornal que contém uma resposta deste médico a um artigo do P.e Agostinho Veloso saído na Brotéria.

6 – A palavra ao Dr. Manuel Dias de Azevedo

O Dr. Azevedo alonga-se no Boletim de Graças, a partir de Abril de 1964, sobre o seu esforço para conseguir o reconhecimento médico do jejum da Alexandrina, justamente quando acabava de falecer o Dr. Gomes de Araújo.
Depois de elogiar o director do Refúgio de Paralisia Infantil e referir as conversas por si havidas com o Arcebispo de Braga, que o aconselhava a aprofundar o estudo clínico da Alexandrina, prossegue:

Fui ao Porto e convidei um médico distintíssimo a irmos a Balasar ver a Alexandrina (cuja doença ou afecção, em 15 de Julho de 1941, o Sr. Dr. Gomes de Araújo tinha classificado de paralisia orgânica por afecção medular de um ou mais focos), dizendo-lhe que não se alimentava. Respondeu-me logo que ia vê-la, quando eu quisesse. Disse-lhe, entre outras coisas, que era um caso interessante, visto que ela, além de não se alimentar, apresentava fenómenos extraordinários, que os teólogos chamavam êxtases. Então esse meu amigo respondeu-me logo que nesse caso desistia de estudar o «caso», visto que não queria meter-se em tal estudo.
Não pareceu dito próprio de tão formoso espírito que ele era. Como católico, tinha obrigação de estudar o «caso», ou para constatá-lo como admirável e respeitável coisa de Deus ou como mistificação a descobrir para não iludir ninguém. E poucos médicos estariam em tão boas condições intelectuais como ele estava. Mas as coisas são como são e, por vezes, como não devem ser.
Depois, fui convidar o Sr. Dr. Carlos Lima, e esse professor distintíssimo respondeu-me que aceitava o meu convite.
Por fim, fui convidar o Sr. Dr. Gomes de Araújo, a quem só disse tratar-se duma doente que não se alimentava. Também aceitou o meu convite, mas creio que persuadido de tratar-se duma anorexia mental igual a outro caso que já lhe tinha entregado e que ele muito bem curou, ou então duma mistificação.
Soube pouco depois que, falando-lhe alguém, na Trofa, neste caso, ele respondera que deveria tratar-se dum caso em que me iludiram e que, em poucos dias, sendo internada e vigiada a doente, depressa daria o que tinha a dar.

Continua mais adiante o Dr. Dias de Azevedo, expondo duas condições fundamentais que impôs ao Dr. Gomes de Araújo:

(…) para o internamento, fiz prometer-me duas coisas:
1.ª – Seria feito o estudo das faculdades mentais da doente, desejando saber, por escrito, se elas estavam ou não normais;
2.ª – A doente não seria obrigada a alimentar-se, a não ser que a tal fosse persuadida, nem lhe seria injectado qualquer medicamento, a não ser que ela concordasse.
Em duas palavras: queria que ficasse registado se ela vivia sem se alimentar e se as suas faculdades mentais estavam normais, estando ela internada qualquer tempo que fosse julgado necessário, concordando o Sr. Dr. Gomes de Araújo com essas condições.

Sabendo-se da idoneidade do Dr. Gomes de Araújo, estas condições só ajudavam ao rigor da observação e enquadravam-se nos objectivos que o Dr. Azevedo tinha em vista.
No Boletim de Julho seguinte, continua:

Não será demais falar no trabalho que teve o Sr. Dr. Gomes de Araújo a fim de investigar se de facto a Alexandrina vivia ou não sem a mínima alimentação, a não ser a Sagrada Eucaristia, autêntica purificação e fortaleza da Alexandrina, o que, sendo tudo, infelizmente para muitos é pouco ou nada. Essa sua investigação é tanto mais interessante quanto é certo que, a este respeito, o distintíssimo médico que era o Sr. Dr. Gomes de Araújo partia da impressão de que a Alexandrina seria uma doente que certamente queria iludir os outros. Aqueles 40 dias de rigorosa investigação foram um autêntico tormento mental para ele, disse-me uma vez a sua saudosa esposa, que também já partiu para a eternidade a receber o prémio das suas virtudes. (…)
Passados quinze dias, dizia-me o Sr. Dr. Gomes de Araújo, já no seu consultório:
- Você chegou para mim, pois comprometi-me a não forçá-la a alimentar-se e eu queria ver se ela podia ou não alimentar-se.
- Mas então, Sr. Dr., quem foi o iludido, eu por ela ou o Sr. Dr. por mim?
Nós não queremos saber se ela pode engolir ou não os alimentos, e eu sei que pode; mas, passados momentos, vomita-os.
Fiz essa experiência durante meses, desde Março de 1942 até Maio deste ano. O que quero provar ao mundo é que ela vive sem alimentação.

Passemos agora ao Boletim de Agosto:

Afirmámos no boletim anterior que aqueles 40 dias de rigorosa observação foram um autêntico tormento mental para o saudoso e distintíssimo médico que foi o Sr. Dr. Gomes de Araújo. Parece-me que nessa ocasião ele estava convicto de que ninguém tivesse passado qualquer temporada de abstinência total de sólidos e de líquidos digna de referência e contra a normalidade das exigências físico-químicas do nosso organismo.
Essas inédias, de que nos fala a hagiografia cristã, eram pouco do seu conhecimento e convicção, partindo da normal lei orgânica de que ninguém podia viver durante meses e anos sem alimentação.
Ao estar na presença duma inédia que lhe apresentávamos para estudo e averiguação, duvidou, como cientista, da sua realidade objectiva, persuadido de que não teríamos tido todo o cuidado para sermos iludidos. Era o caminho próprio e seguro que um investigador tinha a seguir, e seguiu-o no seu inquérito e rigor, sim, mas também com respeito e registo das consequências que iam derivar do seu meticulosos estudo, não se deixando perturbar, nos seus juízos sobre o caso, com as insinuações que alguém, nessa ocasião do seu estudo, lhe fora fazer e a que se refere o Sr. P.e Mariano Pinho, S.J., a pág. 186 do seu último livro –
No Calvário de Balasar – editado no Brasil:
«Concluído o rigoroso exame de quarenta dias sobre a abstinência total de sólidos e líquidos por parte da Alexan­drina, parece deveriam os adversários do caso, ao menos por prudência, calar-se. Mas nada disso: recrudesceu mais o seu zelo.
Houve até quem, ouvindo falar do exame, acorreu pressuroso ao Dr. Gomes de Araújo, antes que ele entregasse o seu relatório, a preveni-lo que “devia ter cuidado com o dito relatório, porque a Doente de Balasar era uma impostora... que ficasse certo que se tratava de uma mistificação»
[1].

Em Setembro, o Dr. Azevedo volta ao tema:

Em seis de Novembro de 1927, num sermão pronunciado na Catedral de Munique, o Cardeal Faulhaber, referindo-se aos acontecimentos de Konnersreuth (Teresa Neumann)[2], disse que “era preciso tratar estes assuntos, em primeiro lugar, com muito respeito». E somente assim podem vir a ser classificados esses fenómenos.
São acontecimentos ou fenómenos explicáveis naturalmente? Dê-se deles, nesse caso, a verdadeira explicação, para esclarecimentos de toda a gente.
Não podem ser explicados naturalmente? Então esses casos terão uma origem preternatural ou sobrenatural.
Enquanto à inédia ou conservação vital da Alexandrina sem alimentação, durante tempo indefinido, para a sua explicação, não podemos esquecer que a fisiologia e a patologia nos ensinam que ninguém pode viver treze anos e meio numa abstinência absoluta de sólidos e líquidos. A medicina não pode explicar a sobrevivência da Alexandrina pelas forças da natureza. Essa explicação só pode ser dada por influência preternatural ou sobrenatural, isto é, a sua causa só poderá ser de origem diabólica ou divina. Poderemos perfilhar a explicação que nos pareça mais razoável, mas só a Igreja docente será autêntico e definitivo juiz. Ora o Sr. Dr. Gomes de Araújo, com a sua rigorosa e inteligente investigação, baseada numa contínua e eficiente fiscalização, veio auxiliar-nos muito a formar indiscutivelmente perante o público o nosso juízo, que será definitivo e completo depois de ouvirmos a Igreja.


Como o Dr. Azevedo também quis que fossem estudadas as faculdades mentais da Alexandrina e certas pessoas, levianamente, apodam os místicos de loucos, ouçamos, para terminar, a opinião avalizada do Dr. Henrique Gomes de Araújo a este respeito:

A expressão de Alexandrina é viva, perfeita, afectuosa, boa e acariciadora; atitude sincera, sem pretensões, natural. Não há nela ascetismo, nada untuoso, nem voz tímida, melíflua, rítmica; não é exaltada nem fácil a dar conselhos. Fala de modo natural, inteligente, mesmo subtil; responde sem hesitações, até com convicção, sempre em harmonia com a sua estrutura psíquica e a construção sólida de juízos bem delineados em si e pelo ambiente, mas sempre, repetimo-lo, com ar de espontânea bondade que o clima místico que desde há tempos a circunda e que, parece, não foi por ela provocado, não modificaram.
...
[1] Quem «acorreu pressuroso» foi um colega do P.e Mariano Pinho e seu adversário. Era então um intelectual conceituado e foi por instigação sua que o P.e Pinho acabou exilado. Chamava-se Agostinho Veloso.
[2] Estamos em crer que a reserva de Braga perante a Alexandrina tem muito a ver com a atitude tomada, mais ou menos oficialmente, perante o fenómeno notabilíssimo de Teresa Neumann, a «estigmatizada de Konnersreuth», na Baviera. O próprio Cónego Molho de Faria alude a esta mística no seu O Caso de Balasar.