sexta-feira, 6 de novembro de 2009

2 – O veredicto da comissão examinadora

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O esforço do Dr. Azevedo para conseguir o reconhecimento público da veracidade do jejum da Alexandrina sofreu um doloroso revés quando, em Junho de 1944, foi publicado o veredicto da Comissão Examinadora que o Arcebispo de Braga D. Bento Martins Júnior incumbira de estudar a Doente de Balasar para que a diocese pudesse emitir sobre o caso um parecer fundamentado.
Foi esta a conclusão a que chegou a comissão:

Perante o longo relatório feito, esta Comissão sente a necessidade de dizer nada ter encontrado que ateste (no caso da Alexandrina) algo de sobrenatural, extraordinário ou miraculoso. Ousa mesmo acrescentar que há indícios seguros para se afirmar o contrário. Por conseguinte, esta Comissão faz votos para que o Ex.mo Prelado adopte todas aquelas medidas necessárias para a glória de Deus e a tranquilidade de tantas almas.

Por isso propôs o Arcebispo:

Tendo em vista este esclarecido parecer e voto, determinamos o seguinte:
a) que se faça silêncio sobre os pretensos factos extraordinários atribuídos à referida doente ou de que ela afirma ser protagonista, os quais não devem ser expostos nem apreciados em público, mas confinar-se quando muito ao âmbito estritamente privado;
b) que seja feita recomendação aos sacerdotes que não alimentem mas antes caridosamente contrariem a curiosidade que em volta da doente e por considerações de ordem religiosa se possa vir a manifestar ainda, visto que essa curiosidade não pode ser sã e bem fundada, nem é louvável;
c) que a mesma recomendação se faça a todos os nossos diocesanos, sempre que houver necessidade e se puder fazer discretamente;
d) que ao Rev.do Pároco de Balasar se comunique que o incumbimos, além disso, de velar para que a doente e a sua habitação não sejam molestadas com visitas importunas, feitas a título de observação dos pretensos fenómenos extraordinários a que se atribua carácter religioso ou intenção religiosa.


Estas determinações foram lidas e comentadas em quase todos os púlpitos da Arquidiocese de Braga e deixaram o Dr. Azevedo sem aliados, isolado, ao menos parcialmente desacreditado face a adversários de peso.
Para se medir, porém, a gritante irresponsabilidade da comissão, leia-se a contundente crítica que ela mereceu aquando do Processo Diocesano:

O “Parecer” expresso pela Comissão não pode ser considerado válido por vários motivos:
1 – Os teólogos não visitaram a Alexandrina (houve apenas uma visita ocasional dum dos membros);
2 – Os teólogos examinaram apenas pouquíssimos escritos da Serva de Deus;
3 – Não foram interrogados o director espiritual, os familiares, o médico assistente, etc.
4 – Contra o parecer dos peritos-médicos sustentam a opinião de que se trata dum caso de histerismo;
5 – Exprimem um juízo sobre o conteúdo dos Escritos que não concorda com o juízo dos Censores.
6 – O “Parecer” é desmentido no Processo de Braga, foi abandonado pelo Arcebispo de Braga e pelos próprios teólogos redactores, que depuseram depois a favor da Alexandrina. Foi um caso de incompetência e presunção.

3 – Carta do Dr. Dias de Azevedo ao Arcebispo Braga

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Mas a crítica do Processo Diocesano foi feita muito depois, quando a comissão já havida caído em descrédito. Ora se a luta foi difícil foi naquele Verão de 1944!
O Dr. Azevedo sentiu a necessidade de reagir face a esta resistência vinda já não do campo médico, mas do da filosofia e teologia; e fê-lo numa carta enviada ao Arcebispo bracarense em 2 de Agosto.
Trata-se dum importante documento pela clareza da argumentação, orientada em grande parte para a defesa do carácter extraordinário do jejum. É um documento dum católico esclarecido que se bate pela verdade, mesmo indo contra o parecer do seu arcebispo.

Exmo. e Revmo. Senhor Arcebispo Primaz,
Recebi o amável cartão de V. Exa. Revma., acompanhado do parecer duma comissão e dumas determinações, relativas ao caso, há muito falado, de Balasar. No fim de ler tudo o que me era dito, senti o dever de dizer a V. Exa. Revma., com o maior respeito e com a maior franqueza, umas cinco palavras:

1.ª Palavra: guardarei sempre em meu coração as palavras amáveis do cartão do Senhor Arcebispo Primaz, agradecendo-lhas, muito penhorado;
2.ª Palavra: procurarei ter a maior prudência, ao ser provocado a falar ou escrever da Alexandrina e sempre recordarei as determinações de V. Ex.cia Revma., para lhes ser obediente, na medida do possível, salva a liberdade para responder a qualquer crítica referente ao caso, saída em qualquer jornal ou revista de responsabilidade, pois não posso nem quero menosprezar o meu brio profissional;
Ilustração 1 Página da carta do Dr. Dias de Azevedo ao Arcebispo
3.ª Palavra: continuarei inabalável, até que a razão ou o bom senso me aconselhem atitude diferente, no mesmo posto de observação, prudência, investigação clínica e admiração pela Alexandrina, verdadeira mártir, que o tempo e Deus plena e brilhantemente justificarão;
4.ª Palavra: servindo-me da ideia do Prof. da Faculdade de Medicina do Porto, Senhor Dr. Mazano, que, falando sobre este caso, e mostrando-se muito interessado por ele, disse «não há explicação possível para já não comer há dois anos», eu continuo, como médico, sem receio de ser confundido, a afirmar que este caso é extraordinário, porque a Ciência diz que uma mulher de 39 anos, de vida intelectual e afectiva intensas, de faculdades e sentidos normais, passando alguns dias e noites sem dormir, e dormindo pouco durante o outro tempo, conservando invariavelmente ou com pequena variação o mesmo peso, conservando ainda o sangue normal nos seus elementos constitutivos ou de desassimilação, vivendo não somente quarenta dias completos e consecutivos (sob vigilância, de dia e de noite, feita por algumas pessoas descrentes), mas dois anos e três meses, aquele primeiro período em abstinência absoluta de alimentos sólidos e líquidos, incluindo a simples água, e o outro período em abstinência absoluta de substâncias alimentares, simplesmente bebendo, um ou outro dia, por imposição médica, uma ou outra colherinha de água simples, com o fim de diminuir a secura que em sua boca por vezes sente, constitui um facto verdadeiramente extraordinário, não sendo preciso, para esta classificação, que os médicos tenham de pedir licença aos filósofos ou teólogos para digna e justamente a fazerem. A quem me disser que há um parecer de filósofos e teólogos que, invadindo campo defeso, significa não ser extraordinário este facto (que maravilhou um especialista de Neurologia não crente em vários dogmas católicos, a ponto de anunciar que devemos ficar «suspensos, aguardando que uma explicação clara faça a necessária luz», pois a observação da Alexandrina tinha podido «ser segura, firme, incontestável, só deixando dúvidas aos que têm o hábito de duvidar … de si próprios»), eu responderei que quem tiver lido a História e a biografia de algumas criaturas extraordinárias sabe bem o valor dos pareceres de uma ou outra comissão. A Igreja só quer a verdade e eu amo uma e outra.
5.ª Palavra: a Comissão, lendo isto, há-de julgar que esta prosa é um pouco enfadonha e estranha a amantes da filosofia e teologia, e eu, para a suavizar, peço licença para citar as palavras do P.e Louis Capalle, S.J., em «Les âmes généreuses», pág. 165 e seg.:

La vérité théologique et expérimentale est que Dieu n’a pas donné aux âmes une résistance illimitée, et qu’Il a laissé aux directeurs ou supérieurs imprudents la puissance redoutable d’entraver ou même de ruiner l’œuvre magnifique qu’Il se proposait d’accomplir. Nier cette vérité ou même chercher à l’atténuer par sophismes spécieux, serait atteindre par le fait même la notion de responsabilité, fondement essentiel de toute morale.

E, depois de mais frases muito interessantes, diz ainda:

Malheureusement, après une réponse évidente, on en veut souvent une plus évidente encore; et ainsi on oublie que Dieu, souverainement indépendant, ne se plie pas toujours aux exigences de ses créatures. Il donne assez de lumières pour que l’on puisse raisonnablement conclure à son intervention, et Il laisse assez de ténèbres pour que l’on ait le mérite d’une humble soumission.

Todas estas frases podem resumir-se em poucas: as determinações de V. Ex.cia, no geral, são justas, embora o tempo não venha a justificar algumas palavras como «pretensos», e o parecer da Comissão, enquanto ao facto, é exorbitante, negando-lhe a qualidade de extraordinário e dando lugar até a juízos temerários, o que não fica bem a filósofos e muito menos a teólogos.
Termino esta, fazendo votos pela preciosa vida de V. Excia. Revma. e pedindo que esta carta seja anexa ao supra mencionado parecer da referida Comissão (ou ao relatório dos médicos) que se pronunciou sobre a grande mártir que é a Alexandrina de Balasar, a quem o Mons. Vilar chamava sua “protectora”, a sua “colaboradora providencial”, a sua “cooperadora mais fiel que Jesus lhe deu”. E esse valia uma Comissão.
Beijo as mãos sagradas de V. Excia. Revma.
Manuel Augusto Dias de Azevedo
Ribeirão, 2 de Agosto de 1944.


Firmeza e clareza notáveis, obediência inteligente, não cega, é o que encontramos nestas “palavras” do Dr. Azevedo.

4 – Quem era o Dr. Gomes de Araújo?

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As polémicas em redor do jejum da Alexandrina envolveram muita gente. Embora arredado e silenciado em Vale de Cambra, todos sabiam que era o trabalho de nove anos do P.e Mariano Pinho que em primeiro lugar era posto em causa; o P.e Agostinho Veloso, esse estava de mãos livres e por isso activo; os médicos, como o Dr. Gomes de Araújo ou o Dr. Carlos Lima, não se envolveram em debates que tinham contornos que ultrapassavam a medicina, mas saberiam bem que se jogava ali o crédito dos seus nomes; os membros da comissão, esses sentir-se-iam seguros pelo aval do Arcebispo.
Tentemos fazer ao menos uma sumária (e incompleta) avaliação de dois protagonistas desta borrasca, os Drs. Gomes de Araújo e Dr. Azevedo.
É pouco o que conhecemos sobre o Dr. Gomes de Araújo para além do que a seu respeito escreve a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Nascido em Baião em 1881, «formou-se na antiga Escola Médico-Cirúrgica do Porto, onde fez um curso distinto. Defendeu tese em 1908, sobre Ionoterápia Eléctrica, trabalho que foi premiado, dedicando-se desde logo à especialidade das doenças nervosas e artríticas.
Em 1926 fundou, na Foz-do-Douro, o “Refúgio da Paralisia Infantil”, que sempre tem dirigido e desenvol­vido com dedicação inexcedível. Esta obra de assistên­cia representa um grande esforço, pois contam-se já por milhares as crianças beneficiadas, e constitui um exemplo que foi seguido na capital, onde passou a organizar-se o «Centro contra a Paralisia Infantil».
O notável médico de­dicou-se à obtenção do soro antipoliomielítico, único que, a partir de 1940, passou a ser aplicado em Portugal.
De entre o grande número de trabalhos publicados, citaremos:
A doença de Hein-Medin — Seus aspectos clí­nico e social; A propósito da Seroterápia da Poliomielite; A primeira epidemia de Poliomielite em Portugal; O pro­blema social do Reumatismo; Histeria — Pithiatismo; Mielastenia Amiotrófica; Os Reumatismos nos seus as­pectos clínico, social e médico-legal, etc.
Tem colaborado assiduamente na Medicina Moderna, no Portugal Médico e noutras revistas científicas nacionais e estrangeiras.
É membro da Sociedade Portuguesa de Química e da Real Academia de Medicina de Madrid» (Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira).
O Dr. Gomes de Araújo faleceu a 18 de Março de 1964. Nessa altura, o Dr. Dias de Azevedo referiu-se-lhe longamente, mas quase sempre no sentido de esclarecer os leitores sobre o jejum da Alexandrina. Essa informação vê-la-emos mais adiante. É de interesse saber que o Dr. Gomes de Araújo possuiu uma casa na Trofa, que o punha na vizinhança do Dr. Dias de Azevedo.
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Imagens: Dr. Gomes de Araújo, capa de um seu livro e edifício do Refúgio da Paralisia Infantil na Foz do Douro.

5 – Quem era o Dr. Manuel Dias de Azevedo?

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O Dr. Manuel Augusto Dias de Azevedo nasceu na vila de Ribeirão, Vila Nova de Famalicão, em 21/09/1874, e aí faleceu, a 20/12/1971. No número de Janeiro de 1960 do Boletim Mensal da Alexandrina, que fundou e que redigiu sozinho desde Julho de 1957 a Agosto de 1970, evocava ele assim a sua adolescência e juventude:

Fui estudar, tendo onze anos de idade, para os Seminários de Braga e, depois de feito aí o Curso Teológico, fui convidado por quem de direito a ir formar-me na Universidade Gregoriana, agradecendo, mas declinando o convite.

Ensinou depois no Colégio de Ermesinde, dedicando-se simultaneamente a actividades de animação religiosa. É então que se matricula na Faculdade de Medicina do Porto, iniciando a actividade médica nos anos 30. Mas voltemos ao seu relato autobiográfico:

Em seguida fui leccionar e resolvi simultaneamente repetir nos Liceus os exames do curso secundário. Após esses exames, matriculei-me na Faculdade de Medicina, fazendo esse curso no tempo normal de seis anos e leccionando sempre. Defendida depois a tese de doutoramento, que nesse tempo era facultativa, embora convidado por pessoas ilustres a ficar a trabalhar no Porto, vim para Ribeirão, minha terra natal, onde há vinte e cinco anos venho exercendo clínica.

Um catedrático veio a chamar ao Dr. Dias de Azevedo «Augusto na medicina»; o Pe. Humberto declara-o «primus inter primos».
Apesar de ser pai de 14 filhos, dadas as dificuldades económicas da população, dedicava dois dias semanais a consultas gratuitas para os mais indigentes.
Homem de acção, foi fundador ou animador de várias instituições de prevenção social, pugnando por elas quer na sua terra natal, quer em vilas e cidades. «Foi chamado a usar da palavra em congressos religiosos de carácter nacional, assembleias paroquiais, permanecendo os seus discursos quer nas respectivas actas, quer em separatas»[1].
Sobre a sua acção junto da Alexandrina, a quem tomou como madrinha, não nos vamos alongar. Interveio em vários jornais e manteve mesmo polémicas com vista a defender o bom nome da sua doente.
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[1] Citado de Jorge M. M. B. da Silva, Vida e obra do Dr. Manuel Augusto Dias de Azevedo, trabalho policopiado apresentado como monografia da cadeira de História da Medicina no Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar.
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Imgens: Dr. Dias de Azevedo e fragmento duma página de jornal que contém uma resposta deste médico a um artigo do P.e Agostinho Veloso saído na Brotéria.

6 – A palavra ao Dr. Manuel Dias de Azevedo

O Dr. Azevedo alonga-se no Boletim de Graças, a partir de Abril de 1964, sobre o seu esforço para conseguir o reconhecimento médico do jejum da Alexandrina, justamente quando acabava de falecer o Dr. Gomes de Araújo.
Depois de elogiar o director do Refúgio de Paralisia Infantil e referir as conversas por si havidas com o Arcebispo de Braga, que o aconselhava a aprofundar o estudo clínico da Alexandrina, prossegue:

Fui ao Porto e convidei um médico distintíssimo a irmos a Balasar ver a Alexandrina (cuja doença ou afecção, em 15 de Julho de 1941, o Sr. Dr. Gomes de Araújo tinha classificado de paralisia orgânica por afecção medular de um ou mais focos), dizendo-lhe que não se alimentava. Respondeu-me logo que ia vê-la, quando eu quisesse. Disse-lhe, entre outras coisas, que era um caso interessante, visto que ela, além de não se alimentar, apresentava fenómenos extraordinários, que os teólogos chamavam êxtases. Então esse meu amigo respondeu-me logo que nesse caso desistia de estudar o «caso», visto que não queria meter-se em tal estudo.
Não pareceu dito próprio de tão formoso espírito que ele era. Como católico, tinha obrigação de estudar o «caso», ou para constatá-lo como admirável e respeitável coisa de Deus ou como mistificação a descobrir para não iludir ninguém. E poucos médicos estariam em tão boas condições intelectuais como ele estava. Mas as coisas são como são e, por vezes, como não devem ser.
Depois, fui convidar o Sr. Dr. Carlos Lima, e esse professor distintíssimo respondeu-me que aceitava o meu convite.
Por fim, fui convidar o Sr. Dr. Gomes de Araújo, a quem só disse tratar-se duma doente que não se alimentava. Também aceitou o meu convite, mas creio que persuadido de tratar-se duma anorexia mental igual a outro caso que já lhe tinha entregado e que ele muito bem curou, ou então duma mistificação.
Soube pouco depois que, falando-lhe alguém, na Trofa, neste caso, ele respondera que deveria tratar-se dum caso em que me iludiram e que, em poucos dias, sendo internada e vigiada a doente, depressa daria o que tinha a dar.

Continua mais adiante o Dr. Dias de Azevedo, expondo duas condições fundamentais que impôs ao Dr. Gomes de Araújo:

(…) para o internamento, fiz prometer-me duas coisas:
1.ª – Seria feito o estudo das faculdades mentais da doente, desejando saber, por escrito, se elas estavam ou não normais;
2.ª – A doente não seria obrigada a alimentar-se, a não ser que a tal fosse persuadida, nem lhe seria injectado qualquer medicamento, a não ser que ela concordasse.
Em duas palavras: queria que ficasse registado se ela vivia sem se alimentar e se as suas faculdades mentais estavam normais, estando ela internada qualquer tempo que fosse julgado necessário, concordando o Sr. Dr. Gomes de Araújo com essas condições.

Sabendo-se da idoneidade do Dr. Gomes de Araújo, estas condições só ajudavam ao rigor da observação e enquadravam-se nos objectivos que o Dr. Azevedo tinha em vista.
No Boletim de Julho seguinte, continua:

Não será demais falar no trabalho que teve o Sr. Dr. Gomes de Araújo a fim de investigar se de facto a Alexandrina vivia ou não sem a mínima alimentação, a não ser a Sagrada Eucaristia, autêntica purificação e fortaleza da Alexandrina, o que, sendo tudo, infelizmente para muitos é pouco ou nada. Essa sua investigação é tanto mais interessante quanto é certo que, a este respeito, o distintíssimo médico que era o Sr. Dr. Gomes de Araújo partia da impressão de que a Alexandrina seria uma doente que certamente queria iludir os outros. Aqueles 40 dias de rigorosa investigação foram um autêntico tormento mental para ele, disse-me uma vez a sua saudosa esposa, que também já partiu para a eternidade a receber o prémio das suas virtudes. (…)
Passados quinze dias, dizia-me o Sr. Dr. Gomes de Araújo, já no seu consultório:
- Você chegou para mim, pois comprometi-me a não forçá-la a alimentar-se e eu queria ver se ela podia ou não alimentar-se.
- Mas então, Sr. Dr., quem foi o iludido, eu por ela ou o Sr. Dr. por mim?
Nós não queremos saber se ela pode engolir ou não os alimentos, e eu sei que pode; mas, passados momentos, vomita-os.
Fiz essa experiência durante meses, desde Março de 1942 até Maio deste ano. O que quero provar ao mundo é que ela vive sem alimentação.

Passemos agora ao Boletim de Agosto:

Afirmámos no boletim anterior que aqueles 40 dias de rigorosa observação foram um autêntico tormento mental para o saudoso e distintíssimo médico que foi o Sr. Dr. Gomes de Araújo. Parece-me que nessa ocasião ele estava convicto de que ninguém tivesse passado qualquer temporada de abstinência total de sólidos e de líquidos digna de referência e contra a normalidade das exigências físico-químicas do nosso organismo.
Essas inédias, de que nos fala a hagiografia cristã, eram pouco do seu conhecimento e convicção, partindo da normal lei orgânica de que ninguém podia viver durante meses e anos sem alimentação.
Ao estar na presença duma inédia que lhe apresentávamos para estudo e averiguação, duvidou, como cientista, da sua realidade objectiva, persuadido de que não teríamos tido todo o cuidado para sermos iludidos. Era o caminho próprio e seguro que um investigador tinha a seguir, e seguiu-o no seu inquérito e rigor, sim, mas também com respeito e registo das consequências que iam derivar do seu meticulosos estudo, não se deixando perturbar, nos seus juízos sobre o caso, com as insinuações que alguém, nessa ocasião do seu estudo, lhe fora fazer e a que se refere o Sr. P.e Mariano Pinho, S.J., a pág. 186 do seu último livro –
No Calvário de Balasar – editado no Brasil:
«Concluído o rigoroso exame de quarenta dias sobre a abstinência total de sólidos e líquidos por parte da Alexan­drina, parece deveriam os adversários do caso, ao menos por prudência, calar-se. Mas nada disso: recrudesceu mais o seu zelo.
Houve até quem, ouvindo falar do exame, acorreu pressuroso ao Dr. Gomes de Araújo, antes que ele entregasse o seu relatório, a preveni-lo que “devia ter cuidado com o dito relatório, porque a Doente de Balasar era uma impostora... que ficasse certo que se tratava de uma mistificação»
[1].

Em Setembro, o Dr. Azevedo volta ao tema:

Em seis de Novembro de 1927, num sermão pronunciado na Catedral de Munique, o Cardeal Faulhaber, referindo-se aos acontecimentos de Konnersreuth (Teresa Neumann)[2], disse que “era preciso tratar estes assuntos, em primeiro lugar, com muito respeito». E somente assim podem vir a ser classificados esses fenómenos.
São acontecimentos ou fenómenos explicáveis naturalmente? Dê-se deles, nesse caso, a verdadeira explicação, para esclarecimentos de toda a gente.
Não podem ser explicados naturalmente? Então esses casos terão uma origem preternatural ou sobrenatural.
Enquanto à inédia ou conservação vital da Alexandrina sem alimentação, durante tempo indefinido, para a sua explicação, não podemos esquecer que a fisiologia e a patologia nos ensinam que ninguém pode viver treze anos e meio numa abstinência absoluta de sólidos e líquidos. A medicina não pode explicar a sobrevivência da Alexandrina pelas forças da natureza. Essa explicação só pode ser dada por influência preternatural ou sobrenatural, isto é, a sua causa só poderá ser de origem diabólica ou divina. Poderemos perfilhar a explicação que nos pareça mais razoável, mas só a Igreja docente será autêntico e definitivo juiz. Ora o Sr. Dr. Gomes de Araújo, com a sua rigorosa e inteligente investigação, baseada numa contínua e eficiente fiscalização, veio auxiliar-nos muito a formar indiscutivelmente perante o público o nosso juízo, que será definitivo e completo depois de ouvirmos a Igreja.


Como o Dr. Azevedo também quis que fossem estudadas as faculdades mentais da Alexandrina e certas pessoas, levianamente, apodam os místicos de loucos, ouçamos, para terminar, a opinião avalizada do Dr. Henrique Gomes de Araújo a este respeito:

A expressão de Alexandrina é viva, perfeita, afectuosa, boa e acariciadora; atitude sincera, sem pretensões, natural. Não há nela ascetismo, nada untuoso, nem voz tímida, melíflua, rítmica; não é exaltada nem fácil a dar conselhos. Fala de modo natural, inteligente, mesmo subtil; responde sem hesitações, até com convicção, sempre em harmonia com a sua estrutura psíquica e a construção sólida de juízos bem delineados em si e pelo ambiente, mas sempre, repetimo-lo, com ar de espontânea bondade que o clima místico que desde há tempos a circunda e que, parece, não foi por ela provocado, não modificaram.
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[1] Quem «acorreu pressuroso» foi um colega do P.e Mariano Pinho e seu adversário. Era então um intelectual conceituado e foi por instigação sua que o P.e Pinho acabou exilado. Chamava-se Agostinho Veloso.
[2] Estamos em crer que a reserva de Braga perante a Alexandrina tem muito a ver com a atitude tomada, mais ou menos oficialmente, perante o fenómeno notabilíssimo de Teresa Neumann, a «estigmatizada de Konnersreuth», na Baviera. O próprio Cónego Molho de Faria alude a esta mística no seu O Caso de Balasar.

7 – A palavra à Alexandrina

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Na Autobiografia, a Alexandrina deixou um relato pormenorizado do que passou nos 40 dias em que esteve internada no Refúgio da Foz. Até porque a primeira parte dessa narrativa é mais conhecida, veja-se a parte final, também ela merecedora de leitura atenta:

Uma das vigias informou do que se passava, a meu respeito, um médico que não me conhecia nem conhecia o caso, o que levantou novas dúvidas.
Atreveu-se esse médico a dizer que não podia ser, que as vigias facilmente se deixavam enganar e que só acredita­ria, mandando para lá enfermeiras da sua confiança.
O Sr. Dr. Araújo, um pouco indignado por não acredi­tarem na observação feita por ele, exigiu que o mesmo mandasse então uma pessoa da sua confiança. E escolheu uma irmã dele. Quando nós pensávamos ver suavizada a nossa dor, foi então que se nos pediu nova prova, mais triste e dolorosa.
O Sr. Dr. Araújo procurou convencer-nos de que era conve­niente passar lá ainda dez dias, embora ele estivesse conven­cidíssimo da verdade, e, contra a vontade de minha irmã, ele insistiu que era preciso ficar para convencer o outro médico. Eu respondi-lhe: «Quem está trinta está quarenta». Assim é que ficou resolvido.
O Dr. Álvaro, na verdade, nem exigia tanto tempo, bastava-lhe só, para se convencer, que eu ficasse quarenta e oito horas sem comer e sem evacuar, e não exigia mais.
Foi o mesmo Dr. Araújo que, delicadamente, para honra do seu nome, convidou a senhora a ficar mais um dia, depois mais outro.
Mesmo depois de cumprida a sua missão, essa senhora voltou várias vezes a visitar-me, convencida enfim da verdade. Este último tempo foi um verdadeiro calvário e eu oferecia a Nosso Senhor e à Mãezinha este grande sacrifício. Dura prova, meu Deus!
(…)
Não faltaram as seduções para ver se eu tomava alguma coisa das suas comidas. Quando me mostravam os petiscos sem dizer nada, eu contentava-me com sorrir-lhes… E quando ofereciam a comida com palavras, eu agradecia: «Muito obri­gada!», mas sempre a sorrir, mostrando não compreender a sua maldade.
Quantas vezes me foi tirada a roupa toda para ser exa­minada!
(…)
Vendo a minha irmã desalentada que aparecia de vez em quando à bandeira da porta a perguntar se eu estava pior… procurava encorajá-la. Coitada! Ela ouvira a conversa do médico que o meu envenenamento era certo, por eu não evacuar. Coitados deles!... Jesus sabe fazer as coisas melhor do que os homens!
Na véspera da partida, fora o dia das visitas. Passaram ao pé de mim todas as criancinhas do Refúgio, a quem dei rebuçados e com quem rezei por todos os da casa.
A minha irmã sentia-se outra e todos o notaram. Fui visitada talvez por mil e quinhentas pessoas… Os polícias tiveram de intervir para manter a ordem. Achei muita graça a um dos polícias que, encarregado de manter a ordem, se limitou a pôr-se ao meu lado e ali ficou todo o tempo, contentando-se com dizer de vez em quando ao povo: «Passem! Passem!»
(…)
A primeira coisa que eu fiz foi pedir à minha irmã que me lavasse. No dia da partida, de manhã, o Médico, que não dormira quase nada, pela responsabilidade, chegou ao Refúgio onde muita gente esperava para poder visitar-me… e depois de estar um pouco comigo, deixou entrar algumas pessoas.
Foi então que nos disse que ficássemos à vontade e que a observação terminara; deixou a minha irmã comer ao pé de mim e disse-me: «No mês do Outubro terão lá, em Balasar, a minha visita, não como médico espião, mas como amigo que as estima».

8. "No jejum perpétuo"

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O P.e Mariano Pinho tem um lugar especial na biografia da Alexandrina, nada substitui o seu testemunho. Além disso, como se sabe, está prometido que ele irá ser canonizado. Por isso, colocamos aqui o capítulo do seu No Calvário de Balasar, onde ele aborda o tema do jejum.

Desde o dia em que cessaram os êxtases da Paixão, cessou também a Alexandrina de comer e de beber: iniciou o seu jejum perpétuo que duraria mais de treze anos.
Ao princípio não estranharam o caso; afinal o que ela comia habitualmente durante uma semana não chegava para uma refeição de quem quisesse nutrir-se bem. De mais a mais já antes tinha suportado jejuns de cinco e até de dezassete dias seguidos. Mas desta vez foram passando semanas, meses, anos sem nada comer nem beber.
Já a 2 de Fevereiro de 1943, escrevia-nos o médico assis­tente, Dr. Manuel Augusto de Azevedo sobre o estranho caso:

É o anjo de sempre a seguir firmemente a missão que Deus lhe marcou para nosso bem. A sua alimentação, desde Março de 1942, Sexta-feira das Dores de Nossa Senhora — até fins de Maio do mesmo ano, consistiu em beber, a meia ma­nhã e a meia tarde, umas colherinhas de água com sal, sendo essa água fervida com um fiozinho de azeite, havendo porém nesse espaço de tempo um ou outro dia em que nada bebia.
De Junho de 1942 até hoje (isto é, nove meses) nada pôde engolir (sem que esteja aflita até vomitar o que engoliu), a não ser a própria saliva, a sagrada Hóstia e algumas gotinhas de água simples.
A isto — se quisermos ser lógicos (continua o médico) e conscientes, temos de chamar, embora respeitando a deci­são da Igreja, milagre de Deus.


Meses depois escrevia o mesmo médico:

Recebi o con­vite do Senhor Arcebispo Primaz, de levar alguns médicos a Balasar, a fim de, à face da Medicina, ser declarado o que se deve pensar a respeito da nossa querida doentinha...
Con­videi um médico católico do Porto — escreve ainda a 13 de Maio de 1943 — e teve medo. Convidei o especialista de doenças nervosas, Dr. Gomes de Araújo, dizendo-lhe que a doente não se alimentava e aceitou o convite. Convidei o es­pecialista de doenças de nutrição — agnóstico — e ficou ma­ravilhado, ao dizer-lhe que não se alimentava.
— Mas, se é verdade isso, temos um autêntico milagre! Que pena não ser internada no Porto, que isso seria para nós uma revelação (acrescentou).
Estive com o Prelado, segunda-feira, e ele quer os exames dos médicos.

Os Drs. Gomes de Araújo, Carlos Lima, Prof. da Facul­dade de Medicina do Porto, com o Dr. Manuel Augusto de Azevedo foram de facto a Balasar, mas pareceu-lhes finalmen­te que a doente devia absolutamente ser internada, pois não confiavam no valor real da vigilância feita na própria casa.
Vencidas não pequenas dificuldades, sobretudo por causa do estado melindroso de saúde da Doente, conseguiu-se de facto interná-la no Refúgio de Paralisia Infantil da Foz do Douro, para ser examinada unicamente sobre a sua abstinência alimentar pelo Dr. H. Gomes de Araújo.
O exame prolongou-se por quarenta dias e quarenta noites, com todo o rigor científico, como consta do Relatório apresentado, com o título: «Um notável caso de abstinência e anúria, por H. Gomes de Araújo, da Real Academia de Medicina de Madrid, director do Refúgio de Paralisia Infantil, especializado nas doenças nervosas e artríticas».
Aí se lêem estas palavras decisivas:

É para nós inteira­mente certo que, durante os quarenta dias de internamento, a Doente não comeu nem bebeu: não urinou nem defecou e esta circunstância leva-nos a crer que tais fenómenos possam vir a produzir-se de tempos anteriores. Não podemos duvidá­-lo. Os treze meses, como nos informaram? Não sabemos.

E termina luminosamente afirmando que há neste caso estranho tais pormenores que, “pela sua importância funda­mental de ordem biológica, tais a duração da abstinência de líquidos e anúria, nos tornam suspensos, aguardando que uma explicação faça a necessária luz”.
Não nos permite o espaço copiar aqui todo esse Relatório, donde são tiradas as citações que aduzimos; mas transcrevamos ao menos o atestado firmado em conjunto pelos Drs. Carlos Alberto de Lima e Manuel Augusto de Azevedo:

Nós abaixo assinados, Dr. Carlos Alberto de Lima, professor jubilado da Faculdade de Medicina do Porto, e Manuel Augusto Dias de Azevedo, doutor em Medicina pela dita Faculdade, atestamos que, tendo examinado Alexandrina Maria da Costa, de 38 anos de idade, natural e residente na freguesia de Balasar, do concelho da Póvoa de Varzim, verificámos que era portadora de uma afecção ou compressão medular, causa da sua para­plegia.
Atestamos também que, estando internada desde o dia 10 de Junho até ao dia 20 de Julho corrente, no Refúgio de Paralisia Infantil, da Foz do Douro, sob a direcção do Dr. Gomes de Araújo e sob a vigilância feita de dia e de noite por pessoas conscienciosas e desejosas de indagar a verdade, foi constatado que a sua abstinência de sólidos e líquidos foi absoluta, durante o seu internamento, conservando-se o seu peso, temperatura, respirações, tensões, pulso, sangue e faculdades mentais sensivelmente normais, constantes e lúcidas e não ha­vendo durante esses quarenta dias nenhuma evacuação de fezes nem a mínima excreção de urina.
O exame de sangue colhido três semanas após o inter­namento supramencionado vai junto a este atestado e por ele se vê que, considerada a dita abstinência de sólidos e lí­quidos, a Ciência não pode explicar naturalmente o que nele se registou, assim como, atentas as verdades da Fisiologia e Bioquímica, não pode ser explicada a sobrevivência desta Doente, por motivo dessa abstinência absoluta, durante os qua­renta dias de internamento, devendo-se salientar que a Doen­te, durante esse tempo, respondeu diariamente a muitas per­guntas e sustentou inúmeras conversas, manifestando a melhor disposição e melhor lucidez de espírito.
Enquanto aos fenómenos observados às sextas-feiras, pouco mais ou menos pela 17 horas oficiais, entendemos que pertencem à Mística, que se pronunciará sobre os ditos fenómenos.
Por ser verdade mandámos passar este atestado que as­sinamos.
Porto, 26 de Julho de 1943.
Carlos Alberto Lima
Manuel Augusto Dias de Azevedo


A par do Relatório médico, é interessante ler nas notas autobiográficas o que a própria Doente escreveu sobre esse epi­sódio: chega a parecer um romance, tão ao vivo nos descreve tudo e com tais pormenores. Aí se verá claro quanto sofrimento veio acrescentar à cruz já tão pesada da Alexandrina, essa prova a que ela se sujeitou exclusivamente para obedecer aos desejos do Prelado da sua Diocese.

Quarenta dias — escreve ela — passados na Foz!
Só Jesus sabe o que eu lá passei: quantos espinhos a ferirem-me! Quantas setas cravadas em meu coração! Quantas humilhações, quantas humilhações! Ra­zão tinha o meu Médico assistente, na minha ida para lá, ao colocar-me na minha testa um pano molhado, em dizer-me:
— Tem por aqui uns cabelos brancos, mas quando vier ainda há de ter muito mais.
E de facto assim aconteceu; eu já adivinhava tudo o que me esperava. Mas é tão bom passarmos tudo por amor de Jesus
.

Estava provada cientificamente a abstinência total da Ale­xandrina de sólidos e líquidos, e, hoje, que sabemos que esse jejum durou mais de treze anos, temos que assimilá-lo aos je­juns dos grandes místicos conhecidos na agiografia, como o de Santa Ângela de Foligno, que esteve doze anos sem tomar nenhum alimento; Santa Catarina de Sena, oito; Santa Liví­nia de Schiedman, vinte e oito, etc.
Os jornais falaram do estranho caso e por isso não ad­mira que, ao retirar-se a Doente para Balasar, tivesse imensos curiosos a querer vê-la: cerca de 1.500, ao que relataram.

Que impressão, meu Deus, aquele burburinho de povo! — escreve a Alexandrina — Não valeram as súplicas da minha Irmã, para que acabassem com aquilo. Não va­leram de nada os polícias. O mesmo Médico teve de ir à janela a dizer que se devia acabar, porque não era possível mais movimento, para não me matarem. Quanta gente jul­gava que tivesse morrido!
Eu de facto fiquei humilhada, abismada e cansadíssima com o nojo de mim mesma, pelos beijos recebidos, as lágrimas etc., que me deixaram no rosto, a dizer-me uma estima que não mereço e não quero.

Além dos Médicos supracitados, outros ainda, ao lerem o Relatório, atestaram que o caso não tinha explicação natural.
Ainda a 3 de Novembro de 1954, o Dr. Ruy João Marques, Prof. catedrático da Faculdade de Ciências Médicas e da Fa­culdade de Medicina da Universidade do Recife, especialista em assuntos de nutrição, declarava:

A meu ver, não é pos­sível explicar por meios meramente científicos — melhor di­ria, por meios médicos — o que se vem passando com a Sra. Ale­xandrina Maria da Costa. Nada faz crer, segundo se depreende dos minuciosos relatórios dos médicos... que se trate de um simples caso de histerismo, sobretudo porque é demasiada­mente prolongado o tempo que a observada passou e vem passando sem tomar o mínimo alimento. Por outro lado, estou certo de que não se trata igualmente de mistificação, pois a comissão (insuspeitíssima e à altura da investigação a proceder) que a observou por quarenta dias e quarenta noites, sob rigo­rosa vigilância, na Casa de Saúde “Refúgio da Paralisia In­fantil”, pôde constatar que, de facto, sua abstinência ali­mentar era total.
Ora essa ausência absoluta de consumo de substâncias nutritivas, durante tão largo espaço de tempo, cerca de 14 anos, se não me engano, não é compatível com a vida e muito menos com a manutenção da normalidade da temperatura, da respiração, do pulso, da tensão arterial, etc. etc. Até mesmo as funções psíquicas deveriam cedo se apresentar obnubiladas, mas é exactamente o contrário o que se verifica: sua vida in­telectual é intensa, suas relações afectivas são perfeitas, suas faculdades e seus sentidos absolutamente conservados.
Trata-se, pois, de um caso extraordinário, direi mesmo excepcional, de modo algum explicável por meios puramente naturais ou através de dados científicos.
Quanto ao progresso da mielite, muito provavelmente existente e responsável pela paralisia, nada tem a ver com a abstinência de alimentos, sen­do uma doença paralela.
Dr. Ruy João Marques

Não há dúvida: este ponto ficou brilhantemente demons­trado, ainda em vida da Alexandrina, o que não quer dizer que cessasse toda a oposição que se notava, em certos sectores, ao caso de Balasar. Pelo contrário, dir-se-ia que mais se agravou, como vamos ver. Mas tudo serviu para mais pôr em foco a virtude nunca desmentida da Doentinha.
Concluamos este capítulo com o que, a 7 de Dezembro de 1946, ouviu de Nosso Senhor:

Não te alimentarás jamais na Terra. O teu alimento é a minha Carne; o teu sangue é o meu Sangue divino; a tua vida é a minha Vida, de Mim a recebes, quando te bafejo e acalento, quando uno ao teu o Meu Coração.
Não quero que uses medicina, a não ser aquela a que não possas atribuir alimentação. Esta ordem é para o teu Médico.
É grande o milagre da tua vida.

(cfr. Hum­berto Pasquale — Alexandrina — trad. port., pág. 152)

9 – O jejum da Alexandrina como prova da existência de Deus

...
Há uma frase do Êxodo que já foi aplicada a certo aspecto da vida da Alexandrina e que faz sentido a respeito do jejum: “Está aqui o dedo de Deus” (digitus Dei est hic, como gostam de a citar os que sabem latim). Se o seu dedo está aqui, porque está aqui um facto maravilhoso, é porque Ele existe…
Foi esse o sentido da luta do Dr. Dias de Azevedo. Outro tanto se implica nos numerosos casos de inédia conhecido da agiografia católica
Aliás, a existência de Deus surge afirmada de forma dramática em repetidos passos dos escritos desta Beata.


10 – Casos de inédia na história da Igreja

São muitos os casos de inédia, semelhantes ao da Alexandrina, que a Igreja registou desde tempos antigos. Assinalamos os seguintes:

Sta. Catarina de Sena, falecida em 1380, 8 anos de inédia.
Sta. Ludwina de Schiedman, falecida em 1433, 28 anos de inédia.
São Nicolau de Flüe (1417-1487) 20 anos de inédia.
Beata Elisabeth de Reute, falecida em 1421, mais de 15 anos de inédia.
Beata Ângela de Foligno, falecida em 1309, 12 anos em inédia absoluta.
Beata Catarina de Racconigi (1468-1547) dez anos de inédia.
Beata Catarina Emmerich.

Uma lista mais completa encontra-se aqui.


11 – Conclusão

Perante um assunto como este, exige-se clareza e firmeza, prudência e determinação. As pessoas têm direito a uma palavra esclarecedora.
Eppur si muove! Queira-se ou não, o jejum da Beata Alexandrina, que tantas e tão grandes resistências provocou, foi uma realidade. Dele devam-se tirar todas as conclusões, mesmo a que referimos no penúltimo número. Há que respeitar o sofrimento dela e dos que a defenderam numa luta desigual.
A reflexão sobre o jejum da Beata Alexandrina não pode parar aqui. É necessário conhecer o que Jesus lhe comunicou sobre ele.

II - O ALIMENTO DA ALEXANDRINA

...
Eugénia Signorile é certamente quem com mais largueza e saber estuda o tema da Eucaristia na vida da Alexandrina. Por isso, é do seu Só por Amor! que transcrevemos quase a totalidade do capítulo intitulado "O alimento da Alexandrina". Ele revela-nos que o jejum , para além do seu aspecto físico, médico, tem uma dimensão mística que nos mergulha fundamente no mundo mais recôndito da Beata.

Eucaristia

Na história já se tinham verificado casos de místicas e místicos que tinham vivido, mesmo durante anos, só com o alimento da Eucaristia. Por exemplo, Beata Ângela de Foligno, durante 12 anos, S. Catarina de Sena, durante anos, o Beato Nicolau de Flue, durante 20 anos.
Também na Alexandrina Jesus quer pôr em evidência o valor da Eucaristia.
Em 1946 está muito consumida com os sofrimentos e com o jejum, que dura desde 42. Alguns sugerem ajudá-la com injecções nutritivas.
O Dr. Azevedo não quer fazer nada contra a vontade divina. Então a Alexandrina pergunta a Jesus:

- Ó meu Jesus, eu quero sofrer, mas saber que em tudo faço a vossa divina vontade. Se quiserem que eu me alimente, se quiserem aplicar-me injecções, que devo eu fazer?
- (...) Não quero que tu uses medicina, a não ser aquela a que não possam atribuir alimentação.
Esta ordem é para o teu médico: será ele que toma a tua defesa.
Quero que ele continue com toda a sua vigilância a amparar-te: é grande o milagre da tua vida. Que ele me ajude, que te ampare!
S (7-12-46)

No desígnio de Jesus o jejum da Alexandrina é um martírio mais que deve levar os homens a meditarem sobre a Eucaristia.
Em Abril de 54 isto será claramente expresso:

Faço que tu vivas só de Mim para mostrar ao mundo o valor da Eucaristia e o que é a minha vida nas almas.
És luz e salvação para a humanidade. Ditosos aqueles que se deixam iluminar!
S (9-4-54)

O valor nutritivo da Eucaristia está bem provado com o facto de que a Alexandrina, durante o jejum total, não poderia sobreviver. De facto Jesus promete-lhe que não a deixará sem a Eucaristia em nenhuma sexta-feira, dia em que se esgota muito ao reviver a Paixão, mesmo sem movimentos.
Em certos períodos o pároco (único que lhe pode levar Jesus) está ausente; há depois as sextas-feiras santas, em que a liturgia consente receber a Eucaristia só como Viático (quando vivia a Alexandrina).
Mas Jesus supre quando falham os homens, mostrando mais uma vez o seu poder no Caso da Alexandrina, que receberá a Hóstia consagrada misticamente, mas realmente, da mão dum anjo ou do próprio Jesus!
Transcrevamos de algum diário.

- Prepara-te, filhinha: ou dar-Me a ti. (...) Repara: desce o Céu sobre ti.
Dou-Me a ti numa Comunhão real, numa Comunhão Eucarística.
Desceu sobre mim a abóbada do céu:
- Que lindo, que lindo! - exclamei eu - Vale a pena, meu Jesus, sofrer e sofrer tudo para possuir o Céu. (...)
Parece-me bem que estendi a língua para receber Jesus.
Ficámos por alguns momentos num silêncio profundo, numa união tão grande.
S (30-3-45)

Jesus insiste em afirmar que se trata duma real Comunhão eucarística.
Em 13 de Maio de 49 dirá:

Vais receber-me em Corpo, Sangue, Divindade, como estou no Céu.

Em 4 de Abril de 47 é Sexta-Feira Santa: Jesus dá-Se-lhe como Viático:

- Minha filha, minha esposa querida, vais agora (apenas terminado o êxtase da Paixão) receber-Me pelas mãos do teu Anjo da Guarda. Vêm ao seu lado S. Miguel Arcanjo e o Anjo S. Gabriel. Atrás deles seguem-nos uma grande multidão deles. Prepara-te: descem do Céu (...)
Inclinou-se para mim o Anjo. Eu estendi-lhe a língua e ele, ao dar-me Jesus, não principiou pelas palavras do costume, mas sim: “
Viaticum Corpus Domini nostri Jesu Christi custodiat animam tuam in vidam aeternam” [i]. (...)
Fiquei mergulhada em amor, numa intimidade com Jesus: parecia-me inseparável dele.
- Minha filha, dei-Me a ti em alimento: sou a tua vida. Dei-Me desta forma para mais e melhor mostrar as minhas maravilhas e para mostrar que estou contente com os meus representantes na terra, com a doutrina da minha Igreja. (...) Recebeste-Me como Viático; e é verdade que és enferma e sem um milagre divino não terias resistido à dor: estavas moribunda.
S (4-4-47)


Transfusão de sangue, efusão de amor

O fenómeno da Eucaristia real dada misticamente já se tinha verificado com algumas grandes almas muito elevadas na espiritualidade, dotadas duma especial sensibilidade para as realidades celeste. Por exemplo, S. Verónica Giuliani, S. Gema Galgani; e em 1916 Jesus escolheu a pequena Lúcia de Fátima para dar-Se a ela mediante o anjo da guarda.

Mas a Beata Alexandrina recebe ainda um outro alimento para o corpo e para a alma: um conjunto de sangue, vida, amor, sob forma de verdadeira transfusão para o sangue e de efusão para o amor. É a primeira alma mística para quem se efectua tal fenómeno. O próprio Jesus o afirma:

Vou dar-te a gota do meu divino Sangue, a maior prova do meu infinito amor, a maior de todas as maravilhas, a maravilha única, que tinha destinado de dar à maior vítima da humanidade, a quem confiei a missão mais sublime”. S (13-2-48)

- Que grande graça, que grande prodígio o sangue do Crucificado do Gólgota correr nas veias da maior crucificada da humanidade!
Jesus ia falando – junta a Alexandrina – e a gota do seu precioso Sangue passava lentamente.
Que união intima: o seu divino Coração unido ao meu!
S (11-6-48)

É importante notar que tal transfusão de sangue não é um facto puramente espiritual, como a efusão de amor. Não, não! É sangue verdadeiro, concreto, que lhe faz dilatar o coração de modo sensível e que deve compensar o sangue que a Alexandrina perde frequentemente, e mesmo durante longos períodos diariamente!
Jesus diz-lhe:

Dar-te-ei o meu Sangue gota a gota, assim como gota por gota o dás por Mim e pelas almas. S (29-6-45)

Recebe-o antes que percas todo o sangue que tens em tuas veias.
Quero sempre esta mistura: o sangue da vítima deste Calvário
(o lugar de Balasar onde vive Alexandrina), da maior vítima da humanidade, com o sangue da Vítima do Gólgota, de Cristo redentor. Assim tens todo o poder e tudo vencerás. S (19-10-45)

No fim do diário de 9 de Novembro de 45 o Dr. Azevedo colocou a seguinte nota:

Há três meses que a doentinha tem diariamente perda de sangue.

Se o mundo soubesse que é a tua vida! Se ele soubesse o sangue que corre em tuas veias, quereriam tocar teu corpo como foi tocado o meu (...) S (27-12-46)

Recebe a gota do meu divino Sangue: é o remate, é a coroa das minhas maravilhas em ti. É o sangue de Cristo, é o sangue que trouxe do ventre puríssimo de minha Mãe bendita, a girar, a correr em ti, nas tuas veias! S (11-11-49)

O sangue que Jesus lhe transmite tem indubitavelmente o objectivo de sustentá-la, de ajudá-la a não ceder sob o peso dos enormes sofrimentos que deve suportar enquanto alma-vítima:

Deixa que corra em tuas veias o sangue que te dá a vida; é a vida que te dá força na tua dor, no teu calvário. S (30-4-48)

Mas para o espírito é preciso o amor:

O sangue dá-te a vida ao corpo, o amor dá-te a vida à alma.
Prodígio maravilhoso! Recebe, enche-te.
S (29-4-49)

A efusão de amor é frequentemente evidenciada por luz, ardor, raios luminosos:

Apareceu-me Jesus em direcção a mim. Do seu divino Coração vieram para o meu uns raios luminosos que mo atravessavam como uns punhais. Jesus parecia estar numa nuvem branca (…)
O meu coração satisfazia-se naqueles raios: eram o seu alimento e o bálsamo de toda a dor.
O tempo foi passando e eu mergulhada naquele doce Paraíso.
S (23-7-48)

Eram tais e em tão grande número os sofrimentos que eu não podia, sentia-me desfalecer. No meu caminho apareceu-me Jesus (...) Da chaga do seu Sagrado Coração saíam raios brilhantes de fogo que vinham todos para mim.
Levantou a mão, com um dedo apontou para o Céu e disse-me:
- Caminha, que Eu te ajudarei! (...)
Esta chuva acendeu em mim um fogo ardente. A dor e a tristeza desapareceram. Fiquei em luz clara.
- Agora sim, meu Jesus, conheço que sois Vós!
(tem sempre temor de que os fenómenos místicos que acontecem nela sejam fruto da sua fantasia: é um dos maiores sofrimentos). S (8-7-49)

Apareceu Jesus e vi que (aqueles raios) saíam do seu divino Coração.
Ele chamou-me e disse-me:
- Minha filha, minha filha, minha amada filha, os raios de fogo que atravessavam o teu coração são raios de amor do teu Jesus. Estes raios levam-te vida, levam-te conforto, paz e luz.
É com esta luz que podes ver quanto necessitas de dar ao teu Esposo Jesus dor, muita dor, com grande reparação.
Os crimes não diminuem, os crimes não deixam de aumentar.
Oh, filha, tantos sacrilégios, tantas iniquidades!
S (19-8-49)

Minha filha, minha filha, venho com o fogo do meu amor aquecer-te o coração, dar-te vida, venho provar-te que estou contigo. S (4-3-50)

É preciso ter presente, todavia, uma coisa essencial: todas as graças que Alexandrina recebe não a têm por fim, mas à missão à que é chamada. Alexandrina deve transmitir à humanidade o amor, a vida de Jesus:

Leva o meu amor, leva a minha paz. Vai dá-la às almas: criei-te para elas e para elas te fiz poderosa. S (23-4-48)

Leva o meu divino amor, vai irradiá-lo. Infunde-o nas almas, fá-lo passar nos corações como setas. S (25-3-49)

Vi pelo centro do Coração de Jesus saírem umas chamas de fogo que o irradiavam todo. Perguntei-Lhe:
- Que fogo é esse, Jesus?
- É o fogo do meu divino amor. É o fogo, minha filha, é o amor que Eu, por ti, dou ao mundo, dou às almas.
Espalha-o, espalha-o!
S (21-7-50)

Via o seu lado aberto e aberto o seu divino Coração. Dele saía uma chuva de ouro e, em vez de cair para baixo, vinha de encontro ao meu coração. Quanto mais chuva do de Jesus saía, mais o meu se enchia, mais luz possuía, maior fogo me queimava.
- Estou a arder, meu Jesus: bendito sejais por tanto me dardes!
Fazei que eu saiba distribuir como Vos apraz!
S (16-6-50)

- Eu sou a ressurreição e a vida (acabara de reviver a Paixão). E tu, à semelhança de Jesus, teu Esposo, és ressurreição e vida de muitas almas, de milhares, milhões e milhões e milhões de almas.
Quando Jesus falava de milhões, parecia que a sua divina voz se espalhava ao longe e que era um nunca acabar, nunca acabar.
E, tomando nas suas mãos sacrossantas o seu divino Coração como se fosse uma custódia cheia de raios dourados, começou a abençoar-me de cima a baixo.
Os raios que dele pendiam atravessaram e penetraram todo o meu ser. Parecia ver-me a mim mesma toda luz, dum lado ao outro. Fiquei como que a arder em fogo.
- Enche-te, minha filha, do que é divino, enche-te do meu amor!
A minha graça e tudo o que é meu há-de transparecer de ti e ver-se em ti como em espelho cristalino.
S (23-2-51)

Jesus exprime numa incisiva síntese a missão da Alexandrina:

Enche-te para encheres,
abrasa-te para abrasares!

S (10-9-48)


N.B. Terminamos aqui a transcrição do capítulo uma vez que a secção seguinte, a última, já se desvia do tema do alimento da Alexandrina.

[i] Corpo Viático de Nosso Senhor Jesus Cristo guarde a tua alma para a vida eterna.
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